Um dos maiores desafios contemporâneos é a reaproximação da cultura com a natureza, separadas pela racionalidade moderna. A religação evolutiva desse modo unidual da condição humana é fundamental para a sobrevivência de um planeta exausto e cada vez mais agredido pelos efeitos de comportamentos destrutivos da humanidade. Dentre as maneiras necessárias e urgentes para a reversão desse quadro estão as que nos convidam à reaprendizagem de ouvir o meio ambiente.
Foi com essa compreensão que participei da audição do vinil A Lenda, que mistura composições do educador social Alemberg Quindins e da arqueóloga Rosiane Limaverde (1966 – 2017) com vozes e ecos da Chapada do Araripe, captados por crianças e adultos vinculados à Fundação Casa Grande, em arranjos de Aécio Diniz e produção musical de André Magalhães. Com as luzes apagadas e público acomodado no palco do Cineteatro São Luiz, a experiência de ouvir e sentir a faixa contínua de meia hora, seguida de debate com Alemberg e Aécio, aconteceu na noite da quinta-feira passada.
A Lenda é um álbum conceitual que, por meio de percepções sônicas, estimula a sensação de presença dos bichos, das gentes e da flora, com seu repertório de sons, ruídos e silêncios reminiscentes e atuais, em matizes biológicas e antropológicas. São vozes, cantos e estrídulos de cigarras, grilos, sapos, ventos, pássaros, folhas, chuvas, cachoeiras e entoações de cultura popular, em um turbilhão de formações e eventos sonoros, manifestados por meio de assobios, sinais de alerta e de atração para acasalamento.
Enquanto ouvia, outros trabalhos associados à escuta integral da comunicação entre a natureza e a cultura foram chegando à minha lembrança. Além de revolver a memória dos sons, esse tipo de audição nos leva também a repassar pontos de contato da experiência pessoal. Em vários momentos deparei com a brincadeira dos elementos e com a evocação de ancestralidades presentes na obra do músico alagoano Hermeto Pascoal. O desejo de ir às entranhas do planeta me levou à versão sonora do tecladista britânico Rick Wakeman para a Viagem ao Centro da Terra (1974), clássico do escritor francês Júlio Verne (1828 – 1905).
A captação dos sons de lendas místicas, feita pelo ornitólogo paulista Johan Dalgas Frisch, em Ecos do Inferno Verde (1963), me trouxe por um instante o canto da mãe-da-lua, e pude sentir também as cores do pássaro do sol pela oficina de procuras sonoras que gerou o álbum A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo (1983), dos baianos Carlos Pita e Myriam Fraga. A pré-história da Chapada e a história do caboclo Cariri ganharam ares urbanos quando me levaram aos caminhos sonoros percorridos pela cantora e atriz Marta Aurélia em Acesa (2018), e suas articulações experimentais.
A descoberta comum de quem escuta obras como A Lenda é a de que somos feitos de ecos, de sons do mundo, tanto em seu caráter físico da audição quanto na audição imaginativa. Sons que afloram em nossas mentes suscitando diferentes graus emotivos, sons que não pertencem a ninguém, que realçam detalhes imponderáveis da ambiência acústica de uma geografia, de um clima, de jeitos próprios de ver o mundo pelos ouvidos, de ver Deus em sua mais remota representação de som e vibração. Sons quase secretos das coisas encantadas, mitificadas e legendárias. Somos sons.