Ziegler precisa voltar a Crateús
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 09 de maio de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No seu esforço para dar contornos nítidos aos aspectos predadores do agronegócio, no que diz respeito à questão ambiental e socioeconômica, o sociólogo e político suíço Jean Ziegler, 79, lança mão de informações ultrapassadas que não chegam a reduzir a importância do tema, mas que comprometem a confiança do leitor nos argumentos apresentados no livro “Destruição em massa – geopolítica da fome” (Cortez Editora, 2013), que será lançado no próximo dia 13, com palestra do autor, por ocasião do 6º Seminário Anual de Serviço Social, no Teatro da PUC, em São Paulo. A obra alerta para o drama da alimentação como um escândalo do presente, colocando-o no mesmo saco do crime organizado.

Sempre que um livro faz referência a algo que conheço de perto, tenho a mania de começar a sua leitura pelo trecho mais familiar, como forma de me sentir seguro com relação às demais abordagens feitas pelo autor. Nesse trabalho de Ziegler, chamou-me inicialmente a atenção o capitulo intitulado “As crianças de Crateús” (p. 77). Parágrafo por parágrafo fui aumentando a minha perplexidade ao constatar que as cenas descritas como atuais estariam mais adequadas se remetidas à realidade de um século atrás, período do consórcio boi-algodão, como base da economia do sertão cearense.

Depois de fazer uma rápida localização territorial e demográfica da região Nordeste, chamando a caatinga de “savana inculta e poeirenta” e falando de açudes como se fossem lagoas do semiárido, Jean Ziegler tenta impactar o leitor com a seguinte imagem: “Vestidos com roupas de couro, vaqueiros a cavalo cuidam de rebanhos de vários milhares de cabeças de gado”. Ora, esse vaqueiro de gibão praticamente não existe mais, até porque a criação de gado também passou a ser uma raridade no Ceará.

O autor afirma que esteve em Crateús nos anos 1980 e é bem possível que tenha ouvido falar e até visto à época um ou outro condutor de rebanho com roupa de couro. Era comum, décadas atrás, o trânsito de gado bovino por aquela região, considerando que muitos criadores aproveitavam o boqueirão da Serra Grande para atravessar com animais, em retiradas para o Maranhão, a fim de escapar da seca. Movimentação semelhante se dava ainda na estação de trem, por ocasião do embarque de reses que seguiam para abate nos frigoríficos de Fortaleza.

Tudo isso é passado. Estivesse o autor atualizado, ao invés de vaqueiros, falaria de motoqueiros fervilhando pelas ruas da cidade, na agitação do seu comércio forte, resultante de uma economia aquecida por programas redistributivos de renda, implementados pelo governo federal na última década. Mas Ziegler continua: “Nas proximidades das grandes fazendas e na periferia miserável da cidade se erguem os casebres dos ‘boias-frias’ e suas famílias, os trabalhadores sem-terra”. Não é bem assim, embora seja evidente o crescimento do fenômeno da favelização em cidades do interior.

As tentativas de redesenho da economia rural enfrentam a ignorância de uma elite imediatista e ávida por concentração de riqueza, incapaz de perceber a importância do equilíbrio social para o desenvolvimento. Um exemplo concreto dessa ausência de discernimento está na desativação das usinas de biodiesel do interior, inclusive a de Crateús, pensadas como instrumentos de uma política social com repercussão econômica, mas forçadas à inviabilização por conta da diferença de alguns centavos no preço da matéria-prima necessária ao seu funcionamento. Ou seja: a produtividade da mamona, por ser uma cultura própria para a agricultura familiar, não permite a competição com a soja, produzida em larga escala e sem agricultores nos latifúndios das corporações transnacionais.

Uma problematização assim estaria mais ajustada à atualidade do debate sobre geopolítica da fome. A propósito, a fala do sociólogo suíço deixa a desejar ainda em pontos concernentes ao viés da má nutrição, sobretudo com relação àquelas pessoas incluídas na nova classe de consumidores brasileiros. Ele prossegue: “Cada manhã, inclusive aos domingos, os ‘boias-frias’ afluem à praça central de Crateús. Os feitores, capatazes dos grandes proprietários, observam a multidão famélica. Escolhem nela os trabalhadores que serão contratados (…) Antes que um homem deixe seu casebre pela manhã para vender-se na praça, a mulher prepara sua marmita: um pouco de arroz, feijão e batata”.

Diante desse quadro equivocado fica complicado ler as referências a outras realidades mencionadas pelo autor como de povos castigados pela fome. Tão crítica quanto a fome é a necessidade de políticas de educação alimentar e nutricional, o acesso à alimentação saudável. Erradicar a fome não é apenas ter o que comer, mas aprender a comer. E Ziegler não trata das corporações responsáveis pelo estímulo à má nutrição, como faz com as organizações do agronegócio. Limita-se a escrever sobre os males da “fome silenciosa” e não ataca suas causas, ainda que tenha um capítulo sobre a má nutrição, que ele intitulou de “a fome invisível” (p. 55).

Apesar desses deslizes Ziegler merece atenção e respeito por sua ampla e rica experiência como Relator Especial da ONU sobre Direito à Alimentação, o que se reflete bem no ar de compaixão institucional da sua narrativa. Ainda mais porque o livro nutre a expectativa de avanços das organizações de trabalhadores para o enfrentamento dos poderosos do mundo agrícola e da loucura especuladora dos predadores do capital financeiro globalizado, e por criticar a indiferença dos Estados mais poderosos e a inércia conivente dos governos dos países subdesenvolvidos, nas efetivas soluções aos problemas da fome.

Em “Destruição em massa” o autor traz dados que instigam o leitor à reflexão, como o “Plano Fome”, com o qual Adolf Hitler (1889 – 1945) pilhou alimentos nos países ocupados pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial (p. 125), e os descompassos identificados por censos da produção de bens alimentares, como, por exemplo, o fato de que “a Índia, embora abrigue quase a metade de todas as pessoas grave e permanentemente subalimentadas do mundo, exporta centenas de milhares de toneladas de trigo” (p. 35). Relata condições precárias de trabalho, de infraestrutura e conflitos endêmicos em vários lugares do mundo e deduz que “a maior violência cometida contra os camponeses é, evidentemente, a desigual distribuição da terra” (p. 45).

Jean Ziegler encontra, inclusive, um culpado original pela geopolítica da fome, o pastor britânico Thomas Malthus (1766 – 1833) e sua teoria de que a fome, ao eliminar os mais fracos, é necessária para o controle demográfico, equilibrando a demanda por alimentos e as condições da terra de supri-la (p. 103). E encontra, também, um algoz para essa lei da necessidade, o médico pernambucano Josué de Castro (1908 – 1973), que demonstrou ser a fome derivada “de políticas conduzidas pelos homens e que ela poderia ser vencida, eliminada pelos homens” (p. 112).

Josué de Castro afirmava que a subalimentação e a má nutrição têm caráter artificial, resultante da colonização, dos monopólios da terra e da monocultura. Este sim, um conceito atual, que se aplica tanto aos fast-foods e seus obesos famintos, quanto à reprimarização da economia exportadora e as commodities do agronegócio. Em seu livro, que tem na capa a pintura “Criança Morta”, de Cândido Portinari (1903 – 1962), Ziegler classifica as corporações transnacionais privadas da agroindústria como “inimigos jurados do direito à alimentação” (p. 157). E conclui que os três cavaleiros do apocalipse da fome são a OMC, o FMI e o Banco Mundial. Muito bom, mas ele precisa voltar a Crateús.