Ensaio publicado no livro “Anel de Barbante: Ensaios de Cultura e Cidadania”
Fortaleza: Omni, 2005
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A condição de vizinhança com o Atlântico, a poucos graus da linha do Equador, deu ao litoral cearense admiráveis particularidades naturais e outras tantas culturais. Da mesma forma que a proximidade com o mar gera no continente formações geológicas, atmosféricas e biológicas especiais, pelo sentido leste-oeste dessa bela faixa litorânea muitas histórias aconteceram e, esquecidas ou não, revelam-se aqui e ali, na exatidão possível: resistentes inscrições rupestres; lendas enxovalhadas dos hábeis pescadores de tubarão; indícios de que por essas praias o Brasil teria sido extra-oficialmente “descoberto” por Vicente Pinzon; a luta até a morte travada pelos nativos que não se renderam ao colonizador; a bravura de heróis como Dragão do Mar que inviabilizaram o embargo ao tráfico de escravos; e a paixão entre diferentes etnias levada à cena literária no romance Iracema de José de Alencar.
Dentro das múltiplas faces dessa terra marcada por tantos heróis solitários e suas anônimas aventuras, o jangadeiro conquistou lugar de destaque nas representações simbólicas cearenses. A reprodução sucessiva dessa imagem nunca conseguiu, todavia, evitar a vacuidade social e cultural que prevalece nas comunidades pesqueiras. Pouco, muito pouco mesmo, tem-se procurado co-
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nhecer e revelar as entrelinhas da vida dos que habitam o litoral. O que a relação dessas pessoas com o mar, numa costa de quase 600 quilômetros, produziu de diferente na sua maneira de ver e construir o mundo é uma incógnita relegada ao esquecimento. É como se o emblema pudesse bastar a si mesmo, num método catártico de transferência, através do qual lembranças, aspirações, reflexões e impulsos ganhassem valores dissociados da consciência.
Tanto quanto os motivos endêmicos da povoação do litoral, as emoções suscitadas por eles, interna e externamente, parecem não seduzir os que têm conduzido os planos de desenvolvimento do Ceará como região turística. Quais as pinturas, a música, a culinária, a dança, os rituais de inversão, enfim, quais as manifestações implícitas e explícitas enunciadas pela cultura litorânea, são interrogações perdidas entre especulações imobiliárias, privatizações de praias, desastres ambientais e discursos evasivos. É uma tela do pintor Raimundo Cela aqui e uma música do compositor Luiz Assumpção acolá.
Das expressões culturais praianas, apenas o artesanato foi visto como de relativa importância econômico-assistencial. Por sinal, uma visão distorcida do tratamento desejado para a produção cultural, pois as estampas das rendas de bilro, do filé, do labirinto, os motivos das garrafas de areias coloridas, a plasticidade dos entalhes e dos utensílios de barro, o trançado de palha dos chapéus dos pescadores, os cipós dos samburás e tantos outras apuradas criações do espírito popular perdem, diante da condição de arrimo oficial, a sua dimensão cultural e social para ser objeto da trama política e mercantil.
O papel secundário destinado aos conteúdos culturais, atrelado ao sentimento de dependência, provocado pelo abuso de vulnerabilidade, obscurece a compreensão de um mundo acuado em
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seus próprios encantos. Com algum esforço mnemônico é possível constatar quão intensamente deixou-se de usufruir do manancial coletivo ancestral. Para enxergar o pouco ou muito do que existe de raízes nativas no jeito de ser cearense é preciso, contudo, um exercício de descolonização da memória e do imaginário. É inconcebível pensar o Ceará sem essa contribuição. Somente com a autoleitura crítica da nossa subjetividade poderemos intervir na reprodução do passado e transformar os nossos gestos cotidianos em conhecimento.
Por força bruta da ação colonizadora e, em seguida, por receio de extinção definitiva, até bem pouco tempo atrás, os sobreviventes indígenas cearenses evitavam o reconhecimento público dessa condição e inibiam paulatinamente seus traços de identificação étnica. A maioria procurava negar as origens para evitar perseguições descabidas dos novos invasores de terra, extirpando deliberadamente o reconhecimento das suas lembranças. Esse terror, moldado no sentimento de culpa, na dor física e, principalmente, no sofrimento moral, sufocou todo um conhecimento indispensável aos padrões contemporâneos de relação entre os povos.
Mesmo dispondo em seu território da maior área de plantação de cajueiros do Brasil e sendo essa fruticultura nativa do nordeste brasileiro, o litoral cearense não se apresenta como um pólo de relevantes eventos ligados à cultura do caju. A razão basilar é cruelmente simples: isso é coisa de índio e não pode ser valorizada para não dar chance de ressurreição a uma história tão bem soterrada. Apesar de tudo, povos como os Tremembé de Almofala ainda guardam resquícios da Dança do Torém, do Mocororó (bebida resultante da fermentação do mosto do caju) e outras expressões que nasceram nas ancestrais louvações aos períodos de colheita. Pode-se atribuir outras justificativas a esse desprezo, tal como o argumento de que o peso econômico da exportação de castanha
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teria reprimido naturalmente os elementos sócio-econômicos para a festa do caju. Mas nenhuma explicação desse tipo tem a carga de preconceito caracterizada pela que exclui precipitadamente os valores dos povos indígenas que viveram e vivem no litoral.
Cultura de dar água na boca
Pouco se atenta para os sabores, cores, aromas e temperos presentes no que a gente come todos os dias, a toda hora, em qualquer lugar. Ao saborear uma tapioca poderíamos estar melhor preparados para sentir algo da contribuição indígena à nossa culinária, sentir o fruto do esforço de quem cuidou da terra para o plantio da mandioca, o suor de quem a colheu e a transportou, a força translúcida do manejo de preparação da goma, a marca dos dedos da cozinheira levando ao fogo e pondo à mesa aquela história quentinha para o nosso paladar.
Esta imagem vale para qualquer alimento, até para os abomináveis fast-food e seus gostos previsíveis. A gastronomia é parte do clima, da sabedoria, das expressões artísticas, da química de uma gente. Pode exaltar, apenas retratar ou denunciar suas intenções para com a vida. Quem não percebe a culinária que tem, está prestes à inanição cultural. Um risco que temos corrido no Ceará. O desconhecimento, o desprezo, a falta de políticas estimuladoras dessa riqueza, atestam a cegueira da doutrina indutora do nosso crescimento econômico. O vinho gaúcho não seria o mesmo sem a festa da uva. Da mesma maneira que a lagosta, o caju e a nossa pecuária de pequeno porte teriam muito mais valor se tivessem suas respectivas festividades. Até os folguedos juninos caíram no esquecimento. A política de exportação, sem a devida fermentação cultural, não passa de adereço para a propagação de mão-de-obra barata.
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Desprovida de indesejáveis xenofobias, simplesmente para facilitar uma comparação, qualquer pessoa pode facilmente perceber o crescente número de pontos de culinária que vêm de fora para se instalar no Ceará. Ao mesmo tempo, é vergonhosa a pobreza e a mesmice dos cardápios dos nossos restaurantes, barracas de praia, botecos e carrinho de sanduba. Alguém pode até dizer: “Êpa! Está cheio de restaurante vendendo carne de carneiro na cidade. É o pau que rola!”. Está bem, é verdade, mas poucos estão imbuídos de motivos que exibem a ambiência da nossa relação com a ovinocultura.
A carne de carneiro aparece nos restaurantes de Fortaleza sem vínculo conceitual, portanto, sem expectativa de continuidade. Mais dia, menos dia, esses mesmos estabelecimentos podem estar igualmente animados com a volta da picanha argentina ou do boi goiano e seus exageros hormonais. É este o ponto nevrálgico da questão. Um prato típico assim, não deve ficar à mercê de rompantes volúveis de sobrevivência do mundo econômico informal. Precisa ser visto em toda a sua grandeza, nascida na tradição pecuária do sertão, e ligada à literatura, à música, ao cinema, ao humor, às artes plásticas, à dança, enfim, valorizando os mais indiscutíveis traços da cearensidade.
Está mais do que na hora de examinar à exaustão qual o nosso sentido de destino. Quem fizer isso, um pouquinho que seja, vai atentar para o vazio da nossa culinária, no leque de horizontes. Não dá para aferir certeza em um universo extremamente subjetivo, mas às vezes é de se pensar que a adversidade política protetora da nossa fome crônica, tornou meio constrangedora a discussão sobre comida no Ceará. Tomara que esse pensamento esteja errado, pois mesmo livres do pecado capital da gula, teríamos um empecilho cruel à valorização da nossa fecunda culinária.
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Outro aspecto que chama a atenção quando se associa gastronomia e cearensidade, é a quantidade e a qualidade dos garçons “chefs de cuisine” que espalhamos mundo afora. É impressionante. Por que teria a diáspora dos cabeças-chatas provocado esse fenômeno? Não dá para acreditar que toda a alquimia dessa gente tenha surgido apenas por conta da necessidade de arranjar trabalho em restaurante do sudeste para ter emprego com comida garantida. É subestimar demais uma gente conhecida pela habilidade, inventividade e capacidade de superação de infortúnios. Os que teimam em voltar e montar o próprio negócio, como o adorável Faustino, acabam dando toques especiais na arte de cozinhar, fazendo misturas com o que aprenderam e ousando em constantes inovações.
Na folha de abertura do livro que Paloma Amado publicou revelando as receitas dos pratos ingeridos pelos personagens dos livros do seu pai, tem uma encantadora frase de Jorge que diz assim: “Cotinha fazia doce de jaca e ninguém dava nada por Cotinha”. É de se louvar o esforço de muitas pessoas que, reunidas em clubes de gourmets, formais ou não, exercitam a culinária e melhoram a qualidade da comida de um ou outro restaurante. Porém, sem valorizar a Cotinha que está na praia, na serra e no sertão, como alerta Jorge Amado (1912 – 2001), não tem como ser consistente e contribuir para um equilibrado desenvolvimento econômico-social. Pelo contrário, a cada dia temos menos acesso ao que produzimos, enquanto a estupidez acaba com os pombais no sertão e a pesca predatória inviabiliza a fartura do mar.
O Ceará necessita urgentemente de garimpar na sua história a culinária errante que deseja para instigar a auto-estima da sua gente e para ter diferencial no mercado turístico nordestino. Só em torno das excepcionais manifestações populares originárias do mito do Padre Cícero dá para formatar o paladar do mundo do
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cangaço, da religiosidade peregrina e da fartura cultural que viceja no Cariri. O que comia Humberto Teixeira (1915 – 1979) no Iguatu quando, ao lado de Luiz Gonzaga (1912 – 1989), criou o baião, um dos mais importantes ritmos brasileiros? E em Canoa Quebrada, qual o tempero usado pelos pescadores em seus manjares, quando Dragão do Mar (1839 – 1914) partiu para liderar o movimento que acabou com a revenda de escravos no Ceará, fortalecendo significativamente o processo de abolição da escravatura no Brasil?
Perguntas, perguntas e mais perguntas. Não existe culinária sem história, sem gente. Por melhor que seja o sabor e por mais bem ornamentado que esteja, um prato é mais saboroso quando integra o sentimento de um povo. Também não adianta muito a comida ser boa se for servida em toalhas de plástico em recinto de higiene duvidosa. Pensar nisso e agir para entender do negócio é inadiável para a geração de renda e melhoria da qualidade de vida cearense. Mas isso merece uma decisão estratégica categórica. Para se ter uma idéia, a França chegou a ameaçar a não entrar na União Européia se tivesse que, na lenga-lenga da globalização, padronizar seu processo de fabricação de queijos.
A maior fonte de matéria-prima para a nossa gastronomia está em fase de profundo declínio. A cajucultura, que deveria ser tratada com a firmeza e competência com que os franceses cuidam dos seus queijos, está largada às traças de um mercado voraz e autofágico. Sabemos dos valores da cajuína, do potencial do refrigerante de caju, do gosto refinado da carne-de-caju, das pesquisas que evoluem com o cajueiro anão precoce e já produziram picles, molho com pimenta para carne, farinha e tantos outros derivados do caju, mas não costumamos lembrar que essa dádiva comestível foi posta por Deus originalmente no nordeste brasileiro e o Ceará ainda dispõe da maior área plantada na região.
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Como a gastronomia intuitiva dos índios aproveitava o caju, pouco se ouviu falar. A música, a dança do torém, o mocororó e os demais ingredientes culturais que integram a festa da colheita ainda hoje realizada pelos Tremembé, não fazem parte do nosso orgulho, nem do calendário turístico do Estado. A harmonia alimentar dos índios, baseada em poucas porções de comida várias vezes ao dia, está fora do nosso hábito. A ignorância exterminadora colonial que praticamente baniu os resistentes nativos do nosso mapa, continua reinando, sem se dar conta de que tais diferenças formam o grande segredo do mundo desenhado nessa vigorosa e caótica passagem de milênio.
Temos um livro com duas centenas receitas de caju (*), editado pela Embrapa/CNPAT (**), temos pesquisas com bons resultados de vinho e cat-chup à base de caju e temos as evidências da importância da castanha como amêndoa disputadíssima no mercado internacional. Podem alegar que falta canal de distribuição, que a concorrência do dumping social asiático consegue ser mais desumana, que o sabor do caju é muito exótico para exportar para consumidores acostumados com suco de macã etc etc. Mas falta mesmo é valorização cultural! Falta visão política e ação enérgica nesse sentido. Ser uma referência em tudo o que diz respeito ao caju, deveria ser uma questão de honra da nossa gente.
(*) SALES, Miranice Gonzaga e GARRUTI, Deborah dos Santos. Delícias do Caju. Embrapa/CNPAT, Fortaleza-CE, 1994.
(**) Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. CNPAT – Centro Nacional de Pesquisa de Agroindústria Tropical.
Assim como em outros lugares a conservação de alimentos se deu em recipientes com azeite ou pelo processo de defumados, a história cearense é rica por ser o berço da charqueada. A vida nômade dos vaqueiros, o ciclo do consórcio gado/algodão, os doces da serra, os atributos agronômicos de uma série de plantinhas comestíveis não catalogadas e as oferendas do mar estão postas ao arbítrio da nossa curiosidade, imaginação e capacidade criativa de fazer deliciosas misturas de forno e fogão. Na feira de Cascavel ainda é possível encontrar mantas de carnes desossadas, esticadas
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nas paredes para curtir ao relento, ao lado de peixes de sol, manzapo, beiju, alfenim e tantas outras iguarias de dar água na boca.
A estranha economia sem cultura
O viés fundamentalmente extrativista e exportador, que assinala o usufruto dos bens naturais da costa cearense, pode ser identificado em muitas atividades ao longo do tempo. Da cera de carnaúba à pesca predatória da lagosta, sempre focou-se em projetos econômicos concentradores de riqueza. As atividades supostamente menos lucrativas, embora com maior longevidade e maior força de sustentação social, via de regra foram e são deixadas de lado. O litoral cearense poderia ser ainda uma grande referência cultural por conta da lagosta. Mas, óbvio, que não dá para sonhar com festa da lagosta, se as pessoas pescam mas não têm o direito de comer esse precioso crustáceo. Caju e lagosta são dois exemplos inquestionáveis da violação simultânea do passado e do futuro que o imediatismo insiste em cometer nessa terra de poucos donos. Ambos têm atributos plásticos e culinários para inspiração nenhuma botar defeito mas, de modo injustificável, têm sofrido exaustivamente as conseqüências da falta de percepção estratégica de desenvolvimento no Ceará.
Mais complexo do que o fato da cajucultura e da pesca da lagosta serem fatores econômicos que não se tornaram culturais, é o fato do povoamento do litoral cearense ter sido feito a partir do sertão, onde o ciclo econômico do couro ganhou incalculável ambiência cultural. A prova disso pode ser tirada na simples consignação da prevalência, nas feirinhas de comidas típicas, de carne-de-sol, baião-de-dois, paçoca, cuscuz e outras iguarias do período áureo da criação de gado no interior. Até mesmo no humor, onde o Ceará ocupa posição destacada, predomina a sátira à empregada doméstica que veio do interior e ao matuto que chega do
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sertão desvendando os códigos urbanos apenas com a astúcia do seu espírito de sobrevivência. A combinação da criação de gado bovino com a plantação de algodão impulsionou a movimentação dos portos cearenses e a formação de frágeis centros urbanos com seus fluxos e refluxos embebidos numa verdadeira metáfora das próprias ondas do mar. Camocim, Acaraú, Chaval e Aracati foram, além de Fortaleza, algumas das cidades privilegiadas por contarem com foz de rios e berços marítimos com profundidades adequadas para o fluxo e atracação de embarcações.
A conjunção do sertão com o mar não ocorreu, portanto, de maneira plena e com maximização cultural. Embora tenha sido comum, até o início do século passado, as pessoas fazerem comboios caatinga afora para pegar sal no mar, foi no século XVIII que o litoral foi ocupado pela indústria do pastoreio. As oficinas de carne em Aracati, montadas para o comércio do charque, demonstram historicamente o quanto a proximidade com o mar tinha função eminentemente logística. Tanto que as praias do município de Aracati, como a do Cumbe e toda a faixa de dunas entre a foz do rio Jaguaribe e a praia de Canoa Quebrada, continuam praticamente inexploradas. A própria Canoa, que virou, ao lado de Jericoacorara, praia internacionalmente conhecida, somente começou a ser freqüentada regularmente por turistas a partir da década de 1970. Mesmo com portos de barcos à beira-mar, os povoados de pescadores nasceram por trás das dunas ao longo de todo o litoral cearense.
Muitas praias ainda inexploradas, tais como Peixe Gordo, no litoral leste, e Apiques, no litoral oeste, apenas recebem os nomes dos seus respectivos lugarejos afastados da beira-mar. Com um pouco de atenção é possível observar que isso é bastante comum. Desperta curiosidade também o fato de que, exceto Fortaleza, em toda a costa cearense somente Paracuru tem sede à
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beira-mar. Chaval está bem para dentro do rio Timonha; Camocim, à margem do Coreaú; Acaraú, antes da foz de rio que lhe deu o nome; Fortim e Aracati ladeiam o leito que antecede o estuário do rio Jaguaribe e Icapuí liga-se ao mar por aterros que cruzam salinas, alagados e camboas. Esta constatação revela bem a geografia da nossa relação com o Atlântico.
Os fazendeiros, que se mudavam para o litoral por razões comerciais, também construíam suas casas de costas para o mar. Esses senhores, cheios de poderes econômicos e políticos, ferraram nas entranhas ingênuas do litoral sua cultura de capitão, major, coronel, barão, visconde e outros títulos honoríficos que compravam do imperador. São marcas que compõem uma história sem o relevante destaque que merece para a compreensão do litoral cearense. Se esses feitos, que poderiam estar nos compêndios de exaltação dos vencedores, não empolgam à investigação da memória, é de se imaginar o quão distante do conhecimento habitam as crenças, os costumes e as manifestações artístico-culturais dos descendentes indígenas, dos filhos dos colonizadores, dos pescadores e dos vaqueiros que trocaram o sertão pelo mar.
O forte holandês, que sugeriu o nome da capital cearense, tem muitas histórias do tempo em que o riacho Pajeú era navegável. Mas as histórias que envolvem a inanição daquele curso natural de água, que hoje chega ao mar escondido com seus dejetos malcheirosos, estão mais encobertas do que ele. Entretanto, para saber do litoral, no trecho que banha Fortaleza, é necessário ter acesso ao que aconteceu e continua acontecendo na beira-mar da capital. Essa leitura encontra-se no mesmo capítulo da ocupação da costa pela face comercial do sertão. Fortaleza cresceu como entreposto de exportações e importações. As pessoas que montaram os galpões para armazenamento de peles, caroço e pluma de algodão, mamona, oiticica, carnaúba, redes e tecidos rústicos,
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não tinham a menor noção do que significaria a preservação do sistema ecológico da região. Queriam vender e nada mais. Tivessem vindo do sertão pessoas inspiradas em fazer uma cidade, em morar, em estabelecer uma vida comunitária saudável, teriam com certeza produzido imensos jardins e largas praças arborizadas.
Há apenas dois séculos que a geografia humana cearense iniciou a sua formação em área administrativa independente de Pernambuco. É uma gente nova, ainda com tempo para definição cultural. Com o crescimento da indústria do turismo no mundo, um litoral tão encantador como o cearense, passa compulsoriamente a exercer grande influência nesse destino. A expressividade do Ceará no contexto nordestino atual e futuro será diretamente proporcional à capacidade do povo cearense de descobrir os segredos da sua história na relação com a porção de oceano que dia e noite acaricia pacientemente a sua costa com sais e espumas refrescantes. Ritos com arte utilitária indígena, causos de pescadores, invasões estrangeiras, contos de salinas, miragens, insolações, festas populares, partidas, saudades, fugas… emigrações, tudo conta ponto nessa hora de recorrer ao inventário cultural para tentar fugir das armadilhas do turismo ancorado em eventos descontextualizados e na exploração pura e simples da face natural das praias.
O espírito da gente hospitaleira
Tornou-se comum dizer que o Ceará é terra de gente hospitaleira, mas ninguém procura entender as razões desse espírito quase solidário de acolhimento. Fala-se da boca para fora, sem qualquer estudo ou reflexão sobre essa preciosidade cultural. Se o que gerou esse comportamento no cearense foi o entendimento assimilado da vida nômade de índios, vaqueiros e da cumplicidade dos pescadores em aventuras nos mares bravios, esse pro-
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cedimento pode ter os limites da própria conotação cultural. O litoral reúne as três fontes desse sentimento, mas com patrimônio imaterial jogado à própria sorte, em um não tão belo dia, isso pode acabar. No princípio, o pensamento de exploração do turismo no Ceará formou-se meio que intuitivamente, com ações de ajuda aos artesãos. Depois, com os ventos traiçoeiros da globalização, transformou-se em estratégia de mero crescimento concentrador de riqueza, com investimentos canalizados para obras de infra-estrutura e busca de investidores externos.
A preocupação com a formação de uma cultura turística e até onde fica a fronteira de interferência no cotidiano das comunidades, foram assuntos que passaram ao largo da euforia do “milagre” industrial cearense. O litoral foi envolvido no ciclo do turismo sem alma, sem conteúdo e sem vaga para o usufruto do desenvolvimento local. Despreparadas para o tipo e o tamanho do desafio a que subitamente se depararam, as pessoas, privadas de uma necessária alfabetização turístico-cultural, saíram à mercê da improvisação em busca de salvação no processo de exploração das riquezas litorâneas.
A desinformação é grande aliada da inconsciência política. As histórias de subjugação passam necessariamente pela violência a cultura local. O desenvolvimento do turismo com sustentabilidade depende da formação de um campo gravitacional da cultura que seja capaz de atrair os corpos da vida coletiva graças as suas massas de expressões humanas, criadas, preservadas e aprimoradas através do tempo. Da maneira como o setor foi concebido no Ceará, a maioria dos agentes turístico-culturais tomaram a rota das circunstâncias. O resultado desaguou em produtos e serviços de baixa qualidade. Desaguou também no contraditório cenário de paisagens alegres e gente entristecida por elásticas interrogações. É realmente contraditório o desequilíbrio entre o sentimento co-
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letivo de impotência e o horizonte de possibilidades que o setor do turismo aponta. Com exceção de algumas ilhas empresariais, lavadas por dinheiro supostamente originado no tráfico de drogas, na prostituição infantil, em caixa dois eleitoral e na fonte potável dos setores públicos.
De peixe a caranguejo, falta de tudo ao longo do litoral cearense. Muitos pescadores desiludidos vivem ganhando gorjetas para olhar carro em estacionamento no meio do sol. Não se aprendeu, ainda, nem mesmo a arte de agradar o freguês disponibilizando o mínimo de sombra para evitar indesejáveis carros quentes e abafados. A baixa umidade sozinha não resolve o problema. Raros são os restaurantes, as pousadas e os hotéis que têm sombra para estacionamento. Pensando bem, não custa quase nada manter algumas castanholas com essa função. Mais do que sombra, a existência do verde contribui para a formação de microclima e dá frescura compensadora a quem se submete ao intenso sol equatorial. Em tempos de campanha internacional contra o câncer de pele, usa-se muito pouco a criatividade para aproveitamento das melhores horas de sol. Os equipamentos de apoio ao uso das praias ficam parados do alvorecer até às nove horas e fecham depois das quatro horas da tarde. Exatamente os períodos em que o sol é mais sadio e provoca reações naturais de maior encantamento. Quem ousa ir à praia nesses horários, além de não contar com a estrutura de barracas funcionando, corre o risco de surpresas desagradáveis, causadas pela ausência de segurança pública.
São facilmente visíveis os investimentos recentes feitos no litoral cearense, principalmente em obras de alvenaria e asfalto. Muitas, devidamente necessárias e urgentes. Existe no estado um quê de município emancipado. Analogia feita com as situações
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em que os novos executivos procuram mostrar serviço e compensar apoios eleitorais com ações de infra-estrutura sem os menores cuidados com a qualidade do futuro local. O caso do Ceará é mais grave porque vai além dessas maldades pontuais e obedece a uma ordem econômica calcada na lógica fundamentalista do mercado, através da qual a competição é colocada como justa mesmo quando uns poucos entram no páreo com muitos milhões de dólares, normalmente bancados por órgãos públicos de desenvolvimento, e a maioria participa do jogo com minguados e furtivos reais. Uns fazem negócios com a orientação de consultorias internacionais e os demais muitas vezes sequer sabem ler e escrever. Fala-se da criação de áreas de proteção ambiental, mas paradoxalmente o que se vê ao longo do litoral cearense é um festival de estacas, cercas e pavimentação de espelhos de areia. Dunas como a que separa as praias do Iguape e do Barro Preto estão cheias de calçamentos por todos os lados. Causa constrangimento esse tipo de prática abusiva. São revelações que demonstram o quanto é extremamente desigual o crescimento concentrador de renda e de riqueza implantado no Ceará.
Parece claro que a oportunidade ofertada aos cearenses resume-se a conquista do status de ser empregado. Os habitantes da costa, então, perdem cada vez mais a chance da auto-suficiência econômica e social. Quando poderiam ser estimulados a criar projetos comunitários sustentados, são convencidos a aceitar a idéia da geração de alguns empregos nos empreendimentos financiados aos poucos privilegiados que vêm ocupando, invadindo e grilando largas faixas do litoral. Para isso, descolam-se algumas verbas e convênios de qualificação de mão-de-obra. Esta é a expressão vendida como mágica: mão-de-obra! Na ânsia da especulação, os exploradores do litoral tentam afugentar da beira-mar todos aqueles que se negam a ser empregados. Até jangadeiro de pesca de
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subsistência incomoda aos que se arvoram de proprietários da costa cearense. Pescadores como os da Praia do Porto, ao lado de Lagoinha, vivem momentos dramáticos de extinção da sua atividade, por conta da briga entre dois especuladores que lotearam o alto das falésias. Como esses pescadores moram a uma certa distância da praia, vivem atônitos sem saber se terão proibida a passagem para o mar. Caso isso aconteça, mais um charmoso ancoradouro de jangadas será apagado do mapa cultural cearense.
Os recursos para o turismo parecem bastante pomposos. Com a finalidade de desenvolver o setor, tem dinheiro entrando e saindo no Ceará que não é brincadeira. Mas algumas aplicações são dignas de estranheza. Coincidência ou não, quem observa insinuações de urbanização de praias como Volta do Rio, na ampla faixa de mangue do litoral oeste, fica com a sensação de que a verdadeira intenção daquele investimento está no fato de que o asfalto puxado em aterros sobre os alagados e suas camboas vai servir mesmo é para escoar a produção de camarão for export dos grandes projetos particulares construídos dentro do manguezal. É triste constatar esse tipo de desconfiança tão subjetiva, mas não existem sinais que sugiram interpretações fundamentadas em ações de desenvolvimento includente.
Como acreditar no propósito de um planejamento que ao invés de incentivar os nativos que tinham ou ainda têm pequenos bares, restaurantes e pousadas, a melhorar a qualidade dos seus serviços, trata apenas de adestrá-los para serem serviçais de estrangeiros? Os investidores do sul e do exterior são bem-vindos. Claro que são! Não se pode negar o quanto tem sido importante a presença dos estabelecimentos bem-cuidados que muitos deles montaram no Ceará. Caso houvesse um mínimo de cultura turística semeada no dia-a-dia do povo cearense, esses negócios serviriam também de referência para o desenvolvimento local. Como
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não há, assiste-se cotidianamente a agonia do fechamento e da venda involuntária de pequenos comércios inviabilizados pela desproporcionalidade dos agentes do mercado. E a mulher do jangadeiro, exímia preparadora de moqueca de arraia, de camarão ao molho, de peixe assim e assado, se tiver sorte, vira cozinheira de hotel.
Apesar de todas essas deformações, o litoral cearense ainda não perdeu a exuberância. Com políticas públicas orientadas por uma mentalidade mais humana e mais de longo prazo — e menos refém da especulação imobiliária e do turismo de rapina – poderá vir a ser uma forte base de sustentação econômico-social. Para isso, precisa deixar de ser uma imagem virtual de propaganda para ser uma causa. E os impulsos capazes de criar uma causa nascem na auto-estima das pessoas. Essa constatação requer compromisso com o coletivo para não encolher o futuro. A obtenção do conceito de desenvolvimento com base no turismo é um ato de consciência que começa no bem-estar cotidiano das comunidades. Só vende hospitalidade, cultura, produtos e serviços de qualidade, quem conhece o que representa e, no caso do turismo, a sociedade que tem uma vida saudável. Há alguns esboços de mobilização política acontecendo em partes do litoral. Pescadores como os de Guriu, no lado oeste, e da Prainha do Canto Verde, na costa leste, têm lutado firmemente contra a fúria dos especuladores e no combate à desinformação. Em Fontainha, pode-se ver placas no alto das dunas anunciando que a praia é de propriedade dos nativos e em Ponta Grossa, a idéia do turismo comunitário começa a tomar corpo entre os moradores.
O momento mais importante para a relação do cearense com o mar ainda está por acontecer. Será o momento em que a sociedade puder tomar ciência do que essa própria relação significa para ela. Será o momento em que as pessoas sentirem-se valori-
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zadas por serem diferentes e por poderem usufruir do valor dessa diferença. Será o momento em que o sentido de conservação e de preservação do meio ambiente faça parte do modelo de vida de cada um. Isso pode ser chamado de sentido de destino. Preparar-se para essa missão é um desafio que mexe com a cearensidade. Um dos segredos atribuídos ao sucesso da Disney é que, dos pipoqueiros aos gerentes, todos os empregados são contratados como atores. Assim, onde quer que estejam atuando, eles cumprem um papel e tratam de representá-lo da melhor maneira possível.
Os lugares inacreditáveis que compõem a costa cearense merecem um toque de exploração responsável. A cultura acuada que os animam, também. Tomando como base Fortaleza, é possível apreciar, no litoral leste, falésias coloridas e densos coqueirais; e, no litoral oeste, mais extenso e curioso, encontram-se andantes dunas monumentais e enigmáticos manguezais. São praias com água de temperatura invejável e impactante manto de céu azul. A exuberância delicada e de forte apelo estético desses lugares não combina com o tratamento a ela dispensado. Cabe ao cearense conhecer mais esse litoral, entrar em contato com as suas próprias origens e recuperar a graça da realidade indivisível que compõe o ser e o viver. Enquanto vigorar a asfixia da memória, da história e da sabedoria cultural, em nome do crescimento de pequenos grupos de beneficiários no plano econômico, o Ceará caxinga em estado de ameaça social.
Cenário encantador e feitos humanos espetaculares é o que não falta para a superação da letargia que devasta a costa cearense. Até quando a natureza e a vulnerável memória dessa cultura suportarão esperar, é uma pergunta a ser repetida constantemente em tom de alerta. O romantismo das noites de luar e o viço do sol quente têm mais valor quando a dança, a música, a pintura, a fotografia, a escultura, a arquitetura, o teatro, o cinema, a culinária,
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as rodas de conversa, enfim, as expressões de uma gente somam emoções ao seu esplendor. E isso só é possível aos lugares que têm personalidade, que têm atributos peculiares que os distinguem dos demais e invocam homens e mulheres, crianças e adolescentes, a viver a vida solta na imensidão. O litoral cearense tem tudo isso, mas está desarrumado e entregue aos caprichos da ganância. Falta que se dê mais respeito e valor, bem como falta identificar muitos dos cheiros, das cores de tudo o que o mar que o banha guarda de segredos na produção da sua estética natural e cultural.
Cearensidade à deriva
A cultura cearense é marcada pelo ardor, pela busca, pelo olhar distante, pela coragem de andar, perambular por aí e enfrentar desafios. Pela vontade de viver. O cearense não se encaixa muito nos modelos desenhados pela história para retratar a conduta dos povos. Esses parâmetros tendem a ser bem comportados, lineares, pré-estabelecidos, como se a dinâmica das sociedades tivesse que se enquadrar sempre em formatações científicas e versões oficiais.
Falar da identidade do cearense é quase um palavrão para quem mede o valor de um povo apenas pela quantidade de prédios históricos existentes em seus centros urbanos. É comum ouvir o argumento de que o Ceará não dispõe de fartura de monumentos como em outros lugares do Nordeste. Fica uma sensação de vazio, como se não houvesse cultura simplesmente porque ela ainda não parece definida e com estágios de evolução clarificados, fáceis de colocar em folder turístico. Tais inteligências, movidas a referências de pedra-e-cal, soterram o que temos de mais rico, por não conseguirem sentir essa riqueza, por não ousarem perceber que o maior patrimônio cultural do Ceará não pode ser visto, tem que se sentido.
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É inquietante o tratamento desdenhoso dado ao patrimônio imaterial cearense. Investiga-se muito pouco o significado revelador de uma herança nativa acentuada pela arte utilitária e pela estética nascida das variadas funções sociais, como a aplicação da arte em cerimônias de guerra e diversão. A ausência de uma vontade de perpetuar as provas do domínio da matéria sob forma de edificações ou outras manifestações menos efêmeras, tem o seu principal eixo de interpretação nas atitudes e reações da vida nômade. Dispomos desse fenômeno cultural como se ele não pudesse nos dizer nada, como se não tivesse nada a acrescentar a nossas vidas.
A desvairada corrida para comprar e vender dunas, lotes de mar, mão-de-obra barata e outros atrativos de virtuosa benfeitoria ofuscam o apego do cearense aos valores conaturais de uma história apagada para não deixar lembranças. Uma história que hiberna entre os termos sobreviventes da língua nativa e a realidade, versões e vitórias da prolongada fúria colonial. Essa flagrante desfeita antropológica pesa na afirmação da cearensidade. É a nossa herança tapuia que estamos negando com essa omissão. É o símbolo de bravura dos que não se entregaram, dos que não aceitaram perder a terra nem a liberdade em vão, embora tenham sido praticamente exterminados por isso.
Temos muito de sangue nativo no nosso coração mestiço de batida errante. Deixar de auscultar a pulsão ancestral de uma gente que, no lugar de sonhar com o acúmulo de riquezas e com eternidades edificadas, sonhava com chuva, frutos de cajueiros silvestres, favos de jandaíra, cantos de pássaros soltos e muitos banhos em riachos que não escavaram o leito nem manejaram o curso das águas. Gente amante do balançar das redes de fibras vegetais e da cura raizeira. Gente pagã, determinada, aguerrida. Gente que, via de regra, foi desagregada e rotulada de tapuia sim-
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plesmente por se negar a ser espoliada de seu próprio ambiente natural e divino.
A tolerância, como um atributo artificial que a humanidade inventou para equilibrar a relação entre as pessoas, não tinha valia na razão dos caçadores de índios em suas perseguições categóricas aos chamados inassimiláveis. A diplomacia missionária atenuava um pouco o rosto da violência com a retórica do domínio por vias da harmonia. Mas não houve jeito. Os confrontos entre as tropas governamentais e os nativos foram sangrentos. A ação dos mercenários bandeirantes, então, nem se fala. A História do Ceará transborda em conflitos, levantes, combates cerrados, matanças e rebeliões. Os que não se submetiam à disciplina oficial e catequética eram logo acusados de ferozes, atrozes, arredios, rudes, brutos e “passados a ferro e fogo”.
Os desbravadores não reconheciam a posse dos nativos e os assassinavam para poder implementar os assentamentos das fazendas. Aldeias e mais aldeias eram desmontadas e grupos inteiros debandados. Os missionários cumpriam a tarefa de tentar reunir as tribos sem-terras para agrupá-las nas áreas não contempladas pelas sesmarias. Esses realdeamentos tinham como objetivo a manutenção da situação sob controle e, em certos casos, o encurralamento dos desertores para facilitar chacinas. Os guerreiros tapuias, por sua vez, invadiam fazendas, fortificações e chegaram a atacar inclusive a vila de Aquiraz, que foi a primeira capital cearense.
Nosso passado tem uma longa e mal-contada epopéia que omite a coragem e consistência cultural. As paredes das ruas, os bairros, os distritos e os municípios que ainda mantém nomes indígenas guardam muitas pistas da nossa história. Com o tempo, a ignorância e o continuado desinteresse por esse patrimônio, a tendência é que os beneficiários da nossa falsa passividade con-
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tinuem passando a borracha em cada uma dessas palavras, como há muito vem sendo feito com bastante competência. Tataíra virou Dep. Irapuan Pinheiro; Humaitá, Sen. Pompeu; Quixará, Farias Brito; Jirau, Piquet Carneiro; Mocambo, Pires Ferreira… e assim por diante.
A diversificação étnica, com a irrelevante, criminosa e economicamente inviável forma de introdução do negro e a penetração violenta do branco europeu, incorporaram por aqui, entre fortes resistências nativas, muitos elementos culturais peculiares que dão ao cearense um perfil bastante diferenciado, portanto livre da fácil comparação com outras realidades antropologicamente mais bem definidas.
Não é tão fácil compreender esse jeito de encarar a vida em zigue-zague, que norteia a nossa gente. Somos caóticos, no sentido quântico da palavra. Nada para nós nos parece mais importante do que viver. Flertamos contumazmente com a existência e isso justifica a nossa capacidade inovadora, criativa e algumas vezes ingênua. Não importa onde ou em que tempo possa acontecer a aventura: se garantindo o Acre para a América do Sul, se ajudando a construir uma capital no Planalto Central ou se esquentando o sangue também do restante da brasileirada, com ritmos em alta temperatura sonora e poética.
É assim que o cearense se faz universal, percebendo ou não esse poder meio abstrato, meio fractal. Por isso é um tanto desarrazoada a exigência isolada dos nossos monumentos visíveis. O “baião” de Humberto Teixeira (1915 – 1979) é um patrimônio cultural tão importante para o Brasil quanto as esculturas do Aleijadinho de Sabará (aprox. 1730 – 1814). Mas não dá para fotografar da mesma maneira e poucos de nós temos nos esforçado para descobrir outras formas de valorizar esse potencial.
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Continuamos com o nosso vaivém amigado a solidão dos que não se encontram com a sua própria cultura. Isso nos torna alegres e nostálgicos ao mesmo tempo. Dizem que há cearense espalhado por todo o planeta, embora poucos consigam permancer nos lugares onde não é possível ver a linha do horizonte. Contemplar a linha do horizonte é uma questão vital. Queremos ver onde a terra encosta no céu, onde o sol se põe e de que lado vem a primeira claridade do dia. Essas são as aptidões sociais mais legítimas do cearense, o que realmente nos distingue enquanto sociedade.
Talvez no pensamento de cada um de nós a fronteira do Ceará seja qualquer linha do horizonte que dê para ser observada de onde quer que se esteja. Juntamente com cada limite mirado, nasce uma nova curiosidade, um novo desejo que o nosso espírito malino e moleque não perdoa em querer saciar. Assim, a gente vai e volta na gangorra do tempo, passando por tudo que dá ou não para imaginar, para suportar, para transformar em riso, sátira, sonho, poesia, tudo o que nos instiga a lutar pelo direito de não passar em vão pelo mundo, de acontecer como ser humano e todas as implicações que essa condição possa significar.
Sem símbolos que ocupem papel importante na sua imaginação, um povo não se reconhece, tem dificuldade de saber para onde vai e ainda vira presa fácil para a exploração da sua honestidade e capacidade de luta. A invasão do litoral no Ceará despreza o estudo da nossa geografia humana, do nosso caráter antropológico, longe do olhar preconceituoso e dos interesses em manter estigmas corrosivos. Que sociedade o nosso espírito comercial, criativo, poético, habilidoso e trabalhador gostaria de construir, não interessa aos exploradores da nossa terra. E muitos de nós escondemos valores essenciais por vergonha de não parecerem modernos. Muitos de nós engolimos o choro de liberdade por medo de expor nossas crenças, por temor de sermos alvos, não
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mais apenas da fúria ancestral que apagou nossa memória, mas da intolerância dos poucos donos que mandam e desmandam no injusto processo de ocupação da costa cearense.
A marca dos capitães donatários
Nos livros de história, nas enciclopédias e nos compêndios escolares, encontramos que as capitanias hereditárias foram extintas em 1759. Eram amplas faixas de terra concedidas a nobres e fidalgos do reino de Dom João III, para serem exploradas de maneira particular, mas atendendo aos interesses dos empreendimentos da Coroa portuguesa. Os capitães donatários, como eram chamados os beneficiários dessa estrutura de repartição de poder, tinham isenções de impostos, exportavam indiscriminadamente o pau-brasil, negociavam com escravos e podiam aprisionar índios, expulsá-los de suas próprias terras, enfim, tinham carta branca para operar do jeito que a insensatez mandasse.
Como nunca paramos para refletir mais profundamente sobre tudo isso, parece mesmo coisa de história, algo aparentemente distante. Entretanto, os vestígios desse passado seguem regendo o cotidiano do Brasil cinco séculos depois. A disputa pelo comando de glebas orçamentárias e pelo controle burocrático de suas operações, provocam prejuízos incalculáveis, muitas vezes em nome da busca de vantagens comparativas. A acanhada cooperação entre os órgãos competentes alimenta a cultura do desperdício, jogando pelo ralo nossos minguados recursos. Os novos capitães donatários fazem isso sem qualquer constrangimento.
Na segunda metade da década passada, dentro de um mesmo guarda-chuva oficial e somente na tentativa de identificação de clusters (agrupamento de riquezas e atividades semelhantes integradas) nordestinos, produziram-se vários documentos dispen-
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diosos, respaldados pela mesma intenção de promover o desenvolvimento integrado regional. Temos nessa linha programas do Ministério da Agricultura (1996), do Ministério do Meio Ambiente (1996), do Banco Mundial, através da Sudene e de secretarias de planejamento dos governos estaduais (1997), do Banco do Nordeste (1998) e os chamados Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, do Ministério do Orçamento e Gestão, estudo feito pelo BNDES, com o objetivo de subsidiar a elaboração do Plano Plurianual do governo federal para a priorização dos investimentos públicos no período de 2000 a 2003.
Somem-se ainda as iniciativas de âmbito estadual, seminários, congressos, formação de comissões técnicas, contratação de consultorias internacionais e a relação aumenta por cissiparidade. Sem dúvida, trata-se de projetos e eventos importantes, tecnicamente bem elaborados por equipes de excelente nível, bonitos e com apresentações impecáveis. Apesar da sofisticação muitas vezes incomparável, essas produções acabam sendo a parte fácil da necessidade porque não mexem nos fundamentos determinantes das transformações econômico-sociais.
A conduta dos novos capitães donatários limita-se, como no tempo do império português, ao olhar vesgo de uma economia marcada para continuarmos eternamente colônia. Talvez a grande missão dos nossos governantes seja, lamentavelmente, manter atualizado o compromisso registrado pelo Códice quinhentista que desenhou o mapa das capitanias hereditárias. Na campanha de saudação aos turistas assinada pelo Governo do Ceará na alta estação de final de ano em 2004, uma peça chama a atenção por afirmar que os portugueses são bem-vindos ao Ceará “há mais de 500 anos”. A forma como o governo trata o assunto retoma a posição de colonização dos portugueses e nessa condição ninguém pode ser bemvindo.
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O certo é que o número de empreendimentos – principalmente portugueses, espanhóis e italianos – aumenta por todo o litoral e, com as devidas exceções, não se sabe quem são esses investidores. Projetos grandiosos chegam, somem e retornam novamente como se o litoral cearense estivesse entregue aos caprichos dos atravessadores de plantão. É o caso da “Cidade Nova Atlântida” que há duas décadas provocou a maior confusão em áreas indígenas no litoral oeste e em 2004 retorna com a aprovação da Superintendência Estadual do Meio Ambiente – Semace, sendo motivo de novas polêmicas.
No dia 3 de novembro de 2004, o Conselho Estadual do Meio Ambiente do Ceará – Coema, aprova o pedido de um grupo espanhol para a construção de uma cidade turística internacional composta por hotéis cinco estrelas, campos de golfe e áreas residenciais de veraneio na margem do rio Mundaú e em uma planície costeira com dunas móveis, dunas fixas, lagoas, riachos e canais de maré. Até aí tudo aparentemente bem, se não fosse o fato do empreendimento ficar localizado em território indígena que sequer foi mencionado na operação. Os Tremembé fizeram um abaixo-assinado dirigido ao presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai, Márcio Pereira Gomes, enviado em 10 de junho de 2004, dando conta do acontecido e solicitando urgente a criação de um Grupo de Trabalho para a realização de estudos de identificação e delimitação de terras, e foi iniciada a elaboração do trabalho de regularização da terra das quase duzentas famílias que vivem na localidade de Buriti e São José, no distrito de Marinheiros, em Itapipoca.
No texto, eles afirmam que “a situação atual é de conflito com as ameaças de morte, a perseguição contra nós para deixarmos a nossa terra, portanto não é possível esperar mais”. No
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trecho que se referem à primeira fase de abordagem do projeto Nova Atlântida – Cidade Turística e Residencial, eles lembram que “quando chegou em nossas terras uma firma da Espanha, querendo se apossar do nosso lugar, chegando até a haver morte de um espanhol”. Em agosto de 2004 circulou uma correspondência nas localidades de São José e Buriti – onde se dá esse drama neocolonial – assinada pelo padre espanhol Pascual Belmont Tari, que se apresenta como vigário de Mundaú e diretor da empresa implicada. Faz as seguintes ponderações:
“Os pedidos de vocês a respeito do direito de permanecer na área, moradia, documentação de terreno, causa indígena ou quaisquer outras reivindicações, podem e devem ser conseguidas sem precisar do ódio que cega as mentes e apodrece o coração humano. A minha responsabilidade como padre, cidadão e diretor da empresa, é encontrar soluções com vocês e por vocês, não contra vocês nem contra ninguém. Até agora vocês não tem aceitado a minha proposta de diálogo e entendimento na paz, por a paz e com a paz. Se vocês ou qualquer outra pessoa continuarem enveredando pelos caminhos da violência, eu não assumo a responsabilidade das conseqüências (…) vocês assumam as conseqüências das atitudes que vocês tomarem, mas não quero nem perante a Deus, nem perante as pessoas, ser acusado de ter usado de meios que o cristão não pode usar, a ameaça e a violência”.
Padre Pascual diz que o motivo da carta é provocar uma reflexão “para que ninguém tenha que se arrepender de ter dado um passo em falso”. O assunto pega fogo e muitas respostas são enviadas ao padre-executivo por entidades citadas no documento circular. O coordenador regional da Federação dos Ttrabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará – Fetraece/Itapipoca, Aristóteles Salustiano do Nascimento, interpreta a mensagem como “uma grave ameaça”, diz que “não há paz sem justiça” e questiona a posição híbrida do vigário: “Será que fica decente para um padre ser o porta-voz do capitalismo especulativo?”. A diretoria do
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Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itapipoca reforça o apoio aos Tremembé da comunidade Buriti/São José “por sua história de vida, de tantos anos de luta em defesa de seus direitos, e pelo que ela simboliza para nós: a Paz, a honestidade e a sede de Justiça Social”. E pontua suas rejeições:
“Quanto suas afirmações como representante da Empresa, apresentamos nossos protestos e repúdio as todos os atos praticados por parte dessa Empresa Capitalista, que há anos tenta de uma forma ou de outra tirar a liberdade e a vida daquela gente, através da retirada da terra que ocupam e dela tiram o sustento há cinco gerações, quando ali chegaram os seus antepassados, e que por direito são os verdadeiros donos. Como Filhos de Deus, representantes dos trabalhadores Rurais e membros da mesma Igreja de Jesus Cristo que somos, não podemos aceitar, e tão pouco nos calarmos diante de atitude como esta, e muito nos surpreende e envergonha que no meio de tudo isso exista um Padre de uma Igreja que se diz ter feito opção pelos pobres e marginalizados”.
Encerram a correspondência solicitando ao padre que fique fora dessa causa e afirmando a disposição do Sindicato de contribuir com a paz “desde que haja justiça e respeito à vida”. Em sua resposta, ainda no mesmo mês de agosto de 2004, o padre Pacual Belmont Tari dirige-se ao coordenador regional da Fetraece e pergunta se pode chamá-lo de irmão ou se não seria melhor dizer “Camarada do Movimento Marxista-Leninista, que utiliza e fomenta a luta de classes para conseguir o poder?”. E complementa dizendo que:
“Certamente não estamos falando da mesma religião, pois na Religião Cristã o rico injusto, o inimigo, o pecador, o capitalista, como vocês dizem, precisam ser amados para que mudem de atitude. Assim fez Jesus quando disse Zaqueu, desce da árvore que eu vou almoçar na tua casa hoje (…) Na religião de vocês, o inimigo ou capitalista precisa ser odiado, para ser vencido e destruído. Não há diferença entre os fanáticos daqui, ricos ou pobres, e os fanáticos
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de lá no mundo Árabe, ricos ou pobres (…) A resposta está com vocês e a responsabilidade também”
Estes parágrafos recortados da correspondência entre as diferentes posições em um dos tantos casos de choque cultural e econômico no litoral cearense visam deixar que as palavras dos envolvidos evidenciem por si o grau de tensão dessas questões. Há todavia outros campos onde tais batalhas são travadas, como no âmbito do Judiciário. Em 3 de novembro de 2004 uma liminar paralisou o processo de licenciamento ambiental, impedindo as obras de construção da Nova Atlântida, na praia da Baleia. A liminar foi motivada por uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, através do procurador Márcio Andrade Torres, pedindo a “nulidade de licenciamento pela Semace para a realização de obra em terras indígenas”.
O Ministério Público ingressa com Ação Cautelar aduzindo que o projeto Nova Atlântida leva a efeito, ilegalmente, construções danosas ao local, em evidente prejuízo à área indígena nele situada, com base no Artigo 231 da Constituição Federal de 1988:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (…) São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar (…) As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (…) As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.
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A argumentação do procurador leva em conta ainda que “em vista da necessidade coletiva de defesa dos índios remanescentes da colonização” cabe ao Poder Público, através das suas instituições competentes, cuidar de prevenir ocorrências de atos indevidos e de punir condutas ilícitas praticadas contra os direitos dos índios. Na petição são intimados o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, e a Fundação Nacional do Índio – Funai, para que se pronunciem e manifestem em qual posição processual pretendem assumir na ação. “E la nave va” como um filme de Federico Fellini (1920 – 1993) recorrendo ao exagero e ao inusitado como maneira de tratar o cotidiano das pessoas mais simples.
Predação dos manguezais
As áreas de mangue do Ceará eram consideradas, até bem pouco tempo atrás, terras devolutas por parte dos exploradores da costa. Serviam para a atividade de subsistência das populações mais próximas das reentrâncias litorâneas e das barras dos rios onde o encontro da água doce com a água salgada favorece a existência dos manguezais. Um ecossistema estável, embora frágil em sua riqueza biológica. A cultura do caranguejo, da ostra, do camarão e de outras ofertas da fauna criada na lama escura e mole dos mangues é a principal fonte de renda e de proteína para muitas comunidades.
Da mesma forma que as dunas foram loteadas pelo barbarismo do turismo colonial, a exploração atoleimada da costa cearense segue devastando o patrimônio natural e cultural dos manguezais, causando sérios e incalculáveis prejuízos sociais e ambientais. Tratores e dragas rasgam irracionalmente os bosques da cobertura vegetal de raízes esculturais para a construção de tanques e canais de inundação dos viveiros de carcinicultura. Muitas
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empresas são acusadas de queimar pneus nos mangues a fim de falsear as imagens dos satélites, criando fictícias zonas não renováveis para obter a autorização de desmatamento e escavação.
A desfiguração do ecossitema dos manguezais é um triste capítulo da invasão do litoral cearense. O espetáculo secular das marés altas avançando pelo continente entre raízes palafíticas que sustentam uma vegetação resistente aos altos níveis de salinidade pouco significa para a urgência dos predadores que só pensam em exportar mais e mais toneladas de camarão. Amanhã, num futuro não muito distante, se essa ação anti-social e antiecológica seguir com tamanha voracidade os mangues certamente desaparecerão, mas os lucros gerados em cima da sua morte terão sido tão extremados que os saqueadores dessas riquezas talvez imaginem poder prescindir do equilíbrio que eles geram.
Os crustáceos têm alto valor protéico, nutricional e muito cálcio em seus exoesqueletos. Deveriam integrar alguns programas estratégicos na dieta nordestina. Entretanto, com a dominação dos manguezais por parte de grandes empresas exportadoras de camarão, o que está acontecendo é o contrário: as pessoas que vivem da pesca e da coleta de mariscos nesses rios estão perdendo fonte de sobrevivência econômica e segurança alimentar. Luís Pajé, nativo Tremembé de Almofala, desabafou em uma reunião ocorrida dia 12 de janeiro de 2004 no Centro Comunitário Indígena Tremembé que sua gente nunca se submeteu à escravidão e que “o rio foi pai dos nossos avós, é nosso pai, será pai de nossos filhos”. Nesse encontro, mais de 80 nativos das aldeias Urubu, Comodongo, Tapera, Pana, Varjota, Torrões e Praia denunciaram (*) estragos de impermeabilização de solo, soterramento de gamboas e canais de maré, supressão de áreas destinadas à pesca e ao extrativismo vegetal e degradação do carnaubal dentre outros
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impactos provocados pela implantação desordenada das fazendas de camarão.
(*) com base em Parecer Técnico do Professor Doutor Antonio Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Esse é uma realidade que se estende pelos mangues de toda a zona costeira do Ceará sob o jargão da criação de alternativas para a geração de emprego e renda a partir da substituição do uso racional dos mangues, onde anteriormente existia apenas uma economia extrativista de subsistência, conforme argumento do engenheiro de pesca Ricardo Cunha Lima, presidente da Associação Cearense de Criadores de Camarão, publicado no mês de novembro de 2004 nas cartas do jornal O Povo. Em correspondência datada de 30 de novembro de 2004, assinada pela ativista Maria Amélia Leite, da Missão Tremembé, e dirigida a autoridades, militantes ambientais e formadores de opinião, faz um resumo da situação com a exposição de denúncias de prejuízos com a qualidade da água – proveniente do processo de despesca dos criatórios de camarão – que está matando os peixes e apresenta depoimentos que falam de ameaças e perseguições “por parte de pessoas recém chegadas na localidade e que se dizem donas da terra, cercando caminhos e cacimbas de onde tiramos água para beber”.
Organizações da sociedade civil se movimentam para reverter a situação das fazendas de camarão nas Áreas de Proteção Ambiental – APA, trabalham em rede promovendo discussões sobre socioeconomia solidária, regatas ecológicas e turismo comunitário. As instituições e comunidades comprometidas com o trabalho educativo receberam em 2004, através do Instituto Terramar, cópias de um vídeo com imagens que demonstram a importância do ecossistema dos manguezais e os impactos da devastação causada pelos grandes empreendimentos de carcinicultura na vida das comunidades litorâneas. Intitulada “O verde violado” a fita
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foi produzida pelo Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará – FDZCC e pela ONG inglesa Environmental Justice Foudation – EJF. A falta de um programa de desenvolvimento oficial sério e transparente complica cada vez mais os conflitos na costa cearense. Enquanto os anos passam, a alteração das correntes marinhas do crescimento provocante avança erodindo expectativas e meios de sobrevivência nas comunidades litorâneas.