Ensaio-entrevista com Maria Amélia Pereira (Peo), publicado no livro “Eu era assim: Infância, Cultura e Consumismo”
Páginas 321 a 334. São Paulo: Cortez Editora, 2009
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A decisão pela valorização do brincar leva em consideração a redução do espaço e do tempo de brincadeira na infância, situação que se traduz em um dos mais graves e urgentes problemas contemporâneos. Problemas estes, que precisam ser superados diante da crise de significados, que reduz a expectativa da qualidade de vida das pessoas e ameaça levar à exaustão os recursos naturais do planeta.
Neste ensaio-entrevista, a educadora baiana Maria Amélia Pereira, a Peo, fala da importância do brincar para a formação do ser humano criativo. Ela é fundadora e orientadora da Casa Redonda Centro de Estudos, em Carapicuíba (SP), onde, por meio da brincadeira e da relação da criança com a natureza, desenvolve o trabalho de descobrir o lugar de expressão da cultura da infância.
Peo e a equipe de educadoras da Casa Redonda Centro de Estudos trabalham com crianças de diferentes classes sociais e de diversas idades, que passam as manhãs conhecendo e se reconhecendo através das brincadeiras. Esta prática acontece na cidade de Carapicuíba, onde moram aproximadamente 500 mil pessoas, na região metropolitana de São Paulo.
Flávio Paiva. A senhora vem desenvolvendo uma afirmação de que os adultos devem ter consciência da importância do espaço da brincadeira na vida das crianças. Como os pais e as mães podem saber o momento ideal de brincar junto com os filhos?
Peo. Se o pai e a mãe compreenderem que brincar é a língua através da qual as crianças se comunicam e criam seus primeiros vínculos, certamente
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eles serão capazes de desenvolver uma atitude mais sensível sobre seus filhos, passando a olhá-los e a escutá-los como seres que estão querendo expressar o seu modo de conhecer e se reconhecer no mundo brincando. Com a brincadeira, a criança presta um grande serviço aos pais, tornando-os capazes de, ao compartilharem desses momentos espontâneos solicitados pelos filhos, redescobrirem em si próprios a infância que ficou ali esquecida, podendo mobilizar um estado de alegria e inteireza tão necessário hoje no mundo adulto.
Flávio Paiva. Em uma sociedade na qual pais e mães normalmente trabalham, há uma tendência de burocratização do cotidiano infantil por meio da montagem de agendas de atividades que preenchem todos os horários da criança. Como conciliar essa situação de terceirização da infância com a abertura de mais espaço e tempo para a brincadeira espontânea?
Peo. Essa infância, a meu ver, está hoje exposta a uma ruptura entre o seu espaço natural, onde o tempo e espaço do seu mundo têm conotações profundamente diferentes do tempo e espaço do mundo adulto. Esta burocratização e terceirização, como você coloca, são palavras do universo do mundo adulto que retratam um sistema sócio-econômico que vem corrompendo uma cultura que possui seu modo próprio de ser e de estar no mundo, que é a cultura da criança. Ao longo do processo de urbanização das grandes cidades, a infância veio perdendo seu espaço, onde acontecia o encontro de crianças com outras crianças de diferentes idades para brincar. Nesses espaços, acontecia a vida vivida. A supressão da vivência comunitária das crianças nos parques, nos quintais, na rua, nos espaços de natureza presentes dentro do recreio das escolas, juntamente com a saída da mulher para o trabalho fora de casa, vêm criando uma alteração substancial na vida das crianças, cujos resultados estamos todos assistindo, nos diferentes diagnósticos que vão sendo apontados. Isso compromete a saúde física, emocional e mental das crianças. Por outro lado, pais e mães sentem-se sobrecarregados, reduzindo assustadoramente os momentos em que a família pode relacionar-se de uma forma tranqüila. Os vínculos afetivos que se estabelecem, em geral, nesse estado da brincadeira são substituídos por formas afetivas compensatórias, que buscam equilibrar as relações, mas estão na maioria das vezes revestidos
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do sentimento de culpa pela ausência. Na verdade, o que a criança solicita do adulto é apenas um olhar e uma escuta sensível, onde ela possa ser afirmada em sua essência, que não é outra, senão a sua natureza de brincante, que quer relacionar-se consigo própria, com o outro e com o mundo através do aqui e agora de suas brincadeiras.
Flávio Paiva. Ao brincar, a criança processa pela imaginação a criação do seu elo interno com o mundo externo. O que acontece quando isso não é possível?
Peo. Acontece o comprometimento do ser humano adulto que ela vai se tornar. Acho que o aumento da violência, assim como o aumento do uso de drogas, são substratos de uma infância reprimida, uma infância que vem sendo privada de estar no mundo dentro de um tempo e de um espaço que seja seu. A criança, quando brinca, transcende o que chamamos de realidade para, assim, recriar o cotidiano. É nessa outra esfera que ela prepara a fonte da criatividade do adulto. Mas uma sociedade adoecida adoece o homem e pressiona a infância. Há um grande número de crianças, hoje, apresentando sintomas de doenças que eram registradas apenas em adultos. Muitas crianças estão sendo medicadas com tranqüilizantes. Muitas delas estão sendo diagnosticadas como hiperativas ou com distúrbio de atenção e isso não faz parte do universo da criança, porque criança é movimento e, ao brincar, ela desenvolve um processo de concentração que está ligado à necessidade de seu próprio desenvolvimento. Brincar é um ato de vontade e de liberdade.
Flávio Paiva. Os brinquedos-produto e os jogos eletrônicos trazem em si uma descrição prévia da brincadeira, o que aumenta a comodidade do brincar e reduz o espaço potencial da criatividade. Diante dessa realidade contemporânea, que tem ainda a atração das telas dos celulares, dos computadores e da televisão, o que é possível fazer para motivar as crianças a se interessarem pelo brincar criativo?
Peo. A tecnologia está aí, as crianças são bombardeadas pelas mídias e pela sociedade de consumo. Não vejo como reverter esse tipo de influência sem o desenvolvimento, no adulto, de uma consciência que entenda a cultura da infância como uma etapa particular do processo de iniciação do humano. Não há dúvida de que os meios de comunicação de massa são instrumentos importantes do nosso tempo, criados pela inteligência humana, mas é preciso que eles sejam usados de maneira inteligente
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a serviço do homem, e não como armas manipuladoras, que tornam o homem seu objeto e não sujeito. Há uma ilusão de que a criança apreenda o conhecimento através de equipamentos dotados de informações lineares e discursivas. Por exemplo, se queremos realmente que a criança venha a ser um adulto consciente sobre a questão ambiental do nosso tempo, ela tem que ter experimentado corporalmente o contato com a terra, com a água, com o fogo, com a natureza. A criança não prescinde da experiência. Ela processa o conhecimento através da exploração concreta dos elementos que chegam até ela. A apreensão efetiva da educação ambiental precisa ir além do discurso. Assim como os demais tipos de conhecimento. Penso que está na hora de reprogramarmos também o anacronismo educacional, que segrega as crianças por idade. Isso destrói a riqueza do processo de troca de experiências vivas e de aprendizagens reais, porque elas são significativas enquanto contato humano. A brincadeira envolvendo diferentes idades realiza aprendizagens que compõem um acervo significativo de conhecimentos, que ultrapassam muitas vezes em qualidade o currículo desenvolvido por nossas escolas de educação infantil. A linguagem da infância é a experiência e isto exige um tempo próprio.
Flávio Paiva. De que maneira a desconsideração desse tempo repercute na educação?
Peo. Estamos assistindo ao equívoco de pais e educadores no entendimento de que informação é conhecimento. Esta falsa impressão tem levado muitas famílias e escolas a pensarem que botando um computador na mão de uma criança, garantem seu desenvolvimento intelectual. Isso não é bem assim, porque o excesso dessas vivências diante da tela, além de aprisionar o corpo da criança, que essencialmente prima pelo movimento para ter saúde física, priva-a do contato com parceiros em brincadeiras que dinamizam vivências com conteúdos a serem incorporados de forma pertinente à sua fase de desenvolvimento. Além do que, há programas que lidam com questões que ultrapassam a capacidade da criança de elaborá-las com equilíbrio, produzindo, assim, intoxicações tanto emocionais como mentais, que alteram comportamentos em seu processo de aprendizagem. Uma tela de televisor atrai bastante qualquer criança. Ela emite a luz e o movimento, que são dois aspectos que geram
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fascínio. Agora, o que está por trás daquela luz é uma outra questão. Na minha experiência de quase 25 anos com crianças entre 2 a 7 anos que têm contato com esses equipamentos, mas têm também a oportunidade de freqüentar um espaço de educação onde a natureza está muito presente, é um fato a preferência pela natureza e pelos companheiros para brincar, em detrimento do uso de televisão ou computador. Então, devolver à criança a natureza, que é sua casa, é fundamental. Inclusive porque ela precisa utilizar um corpo no qual estão presentes todos os verbos a serem experimentados: braços e pernas precisam se articular enquanto sobem e descem das árvores, fortalecendo a musculatura em tempo de crescimento dos ossos. Além disso, nas vivências significativas de vínculos afetivos, que vão sendo construídos através das brincadeiras, a oralidade prima pela sua presença importante para o posterior processo de aprendizagem da leitura e da escrita em seu devido tempo. A criança que não tem espaço nem tempo para brincar está sendo privada da criação de vínculos significativos em relação à vida, porque somente aquilo que é experimentado passa realmente a ser incorporado como conhecimento.
Flávio Paiva. E o que nós adultos temos a aprender com isso?
Peo. A criança traz para nós adultos o sentido da essencialidade do ato, sem qualquer complicador intelectual. Uma criança vê e escuta literalmente aquilo que está vendo e ouvindo. Por isso, o cuidado sensível e atento que o adulto deve ter em relação ao que expõe para a criança ver e ouvir. Se queremos construir uma humanidade consciente e sensível, temos que começar a observar a nós mesmos, adultos, porque as crianças seguem o exemplo com o qual estão em contato. Esta é a nossa responsabilidade como adultos em relação às crianças. Sejamos, antes de tudo, nós mesmos. É isso que elas esperam de nós. A nossa verdade, seja ela qual for. Porque a dualidade do discurso e da vida emite uma mensagem que desequilibra a criança. Certa vez, uma criança, observando um adulto andando sobre uma esteira de ginástica, perguntou: “por que você está andando sem andar?” A criança é assim, ela vê a cena e conclui em palavras o movimento que ela percebe. Estas mesmas crianças que são capazes de observar nos trazem perguntas que muito de nós deixamos de nos perguntar, por exemplo: Existe o infinito? Onde o
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mundo acaba? O que vem primeiro o medo ou o receio? Quem fez Deus nascer? Deus tem mãe? Outro dia, uma criança chegou para mim com uma vela na mão e me disse que queria fazer um “castissol”. Ora, é muito mais adequado e bonito um “castissol” para botar uma vela do que a palavra castiçal.
Flávio Paiva. E muito mais luminoso também.
Peo. Exato. “Castissol” é mais próximo do significado de um objeto que contenha a presença do fogo. Acho fantástica a capacidade que a criança tem de expressar corretamente aquilo que ela vê, que transcende muitas vezes o que nós adultos estamos vendo. A criança pensa por analogia, ela reconhece pelas semelhanças, que é o primeiro passo para um conhecimento científico. Por isso, dizia Albert Einstein, “brincar é a mais elevada forma de pesquisa”. Pois bem, é esta a leitura que nós adultos estamos convidados a fazer neste século XXI, sobre a cultura da infância. A criança aponta para um repensar de nossa humanidade. É um embrião humano que nela se expressa. Daí sua importância vital.
Flávio Paiva. Os esforços de afirmação da urbanidade brasileira afastaram as crianças da convivência com os mitos da cultura popular, dentre eles o Saci-Pererê. Com o esgotamento das mega-cidades, estaríamos dispostos a construir uma consciência de que o equilíbrio social e ambiental passa por uma relação mais estreita com as referências originadas na cultura rural e na natureza?
Peo. Tenho convivido com populações de periferia, muitas delas recentemente advindas do meio rural, que trazem ainda intactos os elementos da cultura popular de sua região. Percebo, na relação com essas pessoas, que dentro delas está parte significativa de uma cultura ainda viva, que permanece como alimento inestimável para sua sobrevivência nas grandes cidades. Acredito que a salvação, inclusive de nossas cidades, está nessa cultura encoberta no presente, mas guardada por essas populações que ficaram à margem do processo de desenvolvimento urbano. Essas pessoas detêm, hoje, a riqueza da diversidade cultural brasileira, que precisa ser urgentemente conhecida e reconhecida para que nosso País dê o salto necessário a uma educação capaz de legitimar o nosso povo e nossa cultura, criando a identidade distintiva do Brasil. Sinto que essa ponte da educação brasileira com a cultura popular tem
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a mesma qualidade transformadora da ponte que precisa ser feita da nossa educação com o conceito da cultura da criança. Ambas trazem o que temos de essencial na experiência humana. Além disso, o Brasil tem uma característica fundamental que nos difere um pouco de outros países, que é o fato de contar com duas palavras, para significar o universo da infância: brincar e jogar. A palavra brincar me parece traduzir mais apropriadamente a essência do “fazer” da criança do que o jogar, única palavra presente no vocabulário de outras línguas. Não é em vão que a língua portuguesa faz esta distinção.
Flávio Paiva. A palavra jogo pressupõe a existência de alguma regra…
Peo. O que não acontece com a palavra brincar. Por isso, quando distinguimos o jogo da brincadeira como língua, estamos apresentando uma qualidade da essencialidade do brincar no sentido pleno da espontaneidade e da liberdade. É importante termos esse sentido na própria língua, porque é por meio da língua que pensamos, que vivemos e nos distinguimos. Não é à toa que a cultura popular chama de brincantes aqueles mestres que desenvolvem seus folguedos, isto é, suas brincadeiras. Se conseguirmos juntar o brincar da infância com a figura do brincante da cultura popular, teremos dois pilares de grande valor para a reorganização educacional e social que estamos nos devendo, porque eles fazem parte de uma mesma raiz: a necessidade de expressão humana em sua verdade, singularidade e diversidade.
Flávio Paiva. Se o brincar socializa, ajuda na formação da sensibilidade, na preparação para a vida, na inserção da criança na memória coletiva, no experienciar a relação espaço e tempo, enfim, no desenvolvimento emocional, social, físico e mental, a que Estatuto pode se dizer que pertence a brincadeira?
Peo. Eu diria que a brincadeira pertence à dimensão do sagrado. O sagrado enquanto segredo, enquanto mistério da vida presente em cada ser humano que se inicia neste planeta. O brincar sagra a vida porque dá sentido ao que está sendo vivido. É a expressão livre, espontânea e imprevisível do humano. É o exercício de sua liberdade e, por isso, a seriedade do ato de brincar. O brincar é muitas vezes entendido como um tempo perdido, como um não-fazer-nada. Aí está um grande engano, pois brincar não é entretenimento. Brincar é um processo de conhecimento que se
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realiza dentro de um estado de alegria, pela característica da presença da liberdade que é própria dele. Não há um gesto do brincar que seja aleatório. Há sempre um significado profundo refletido no brincar, para quem aprende a olhar e escutar a criança. O ser humano nasce dotado desse recurso extraordinário de inaugurar a vida brincando, e essa inauguração é o que possibilita que ele se situe como um ser único e verdadeiramente humano. Schiller, um escritor alemão, diz que o “homem só é inteiro quando brinca, e é somente quando brinca que ele existe na completa acepção da palavra homem”.
Flávio Paiva. Temos no lúdico um elemento de ligação de todas as faixas etárias. Na infância, a ludicidade se manifesta naturalmente até que, a partir de uma certa idade, é posta de lado, por pressão dos padrões sociais estabelecidos. Estaria, assim, a brincadeira e o jogo na base de toda a experiência humana?
Peo. Digo sempre que o brincar é a iniciação humana ao processo criador. Quem tem a chance de brincar certamente torna-se um adulto mais criativo, porque tem em sua memória a presença da alegria. Gosto dos poetas porque eles me ajudam na compreensão do que seja o brincar. No poema O Guardador de Rebanho, de Fernando Pessoa, há um trecho em que ele diz: “Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas / No degrau da porta de casa / Graves como convém a um deus e um poeta / E como se cada pedra fosse todo o Universo / E fosse por isso um grande perigo para ele / Deixá-la cair no chão”. Está aí uma síntese extraordinária entre Deus, o Poeta e a criança brincando.
Flávio Paiva. A brincadeira também faz parte da vida das aves, dos peixes e dos animais. É bonito ver um gato, um cabrito, um pássaro, um peixe, enfim, os bichos brincando por instinto para aperfeiçoar suas habilidades. O que é que distingue a brincadeira de criança da brincadeira dos bichos?
Peo.Um macaquinho quando brinca com a macaca certamente está criando seus vínculos e aprendendo a se relacionar com os meios de sobrevivência de sua espécie. Assim como nos demais animais, instintivamente as aprendizagens para sobrevivência e seus vínculos são estabelecidos. Entretanto, o brincar humano traz uma nova complexidade que por certo extrapola a dimensão apenas instintiva animal. A criança humana é dotada de uma liberdade criadora que permite reinventar, a cada momento, as
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suas brincadeiras, o que se traduz na infinidade de movimentos de seus brinquedos, aspectos que têm a ver com a memória biológica e psicológica da espécie, assim como de sua hereditariedade. Mas a criança tem também a possibilidade intrínseca de poder dar, em qualquer momento, um salto novo na reorganização desses fatores genéticos, inaugurando novos “conseguimentos” na evolução do desenvolvimento humano. As brincadeiras das crianças se ligam a conhecimentos que extrapolam a condição dos animais, porque se inserem em conhecimentos que marcam uma história, no tempo e no espaço, de conquistas humanas, resultando algumas brincadeiras de vestígios de rituais e cultos vividos por outras gerações, que as crianças se apropriam como seus brinquedos. É o caso, por exemplo, da pipa, do pião e da perna de pau.
Flávio Paiva. Essa rememória dos passos da perna invisível cultural é muito comum com relação a instrumentos que eram usados como arma e que viraram brinquedos, como o bumerangue, o ioiô e a espada.
Peo. ,Ao privar a criança das brincadeiras, a sociedade desloca também esse ser da sua ancestralidade. Essa memória está no corpo e uma vez vivenciada ela pode ser integrada de uma nova maneira. Todo menino pega num pedaço de pau e logo o traduz numa espada, em algo que o mobiliza para enfrentar o outro, seja numa briga real seja numa brincadeira. Atacar e defender são dois movimentos muito presentes nas brincadeiras infantis, principalmente dos meninos, e que reportam a vivências remanescentes, talvez, de um estágio de sobrevivência humana. Refazer este caminho pode ser uma das características das brincadeiras, além de expressar também o exercício de sua necessidade de contatar o outro, descobrir sua força, confrontar os monstros que ocupam o seu imaginário, expor-se a uma infinidade de situações através das brincadeiras. Nelas, os conflitos vividos passam a ser aprendizagens significativas que se incorporam como experiência no desenrolar do desenvolvimento infantil.
Flávio Paiva. Assim como a brincadeira, a fantasia e o sonhar fazem parte do mundo da leitura, na infância. Muitas mães e pais têm procurado oferecer aos filhos, em casa, livros que orientam o entendimento, como acontece na escola. Esse é um bom caminho para a educação plena ou livro bom para criança é o que
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deixa que ela fique livre para entender o que quiser, o que estiver ao alcance da sua curiosidade?
Peo. Acredito que o melhor livro para criança é aquele que não é pensado para ela, mas o que expressa a relação do ser humano com o mundo na sua forma mais verdadeira. Observo hoje esta onda do politicamente correto na literatura infantil, como o mundo adulto trazendo mais um complicador para nossas crianças. Isto vem se fazendo, na maioria dos casos, sob uma forma literária reducionista, que além de empobrecer a infância com um conteúdo discursivo moralizador, abafa a possibilidade da criança de se apropriar do mundo que lhe está à volta, de uma forma direta e vivencial, permitindo a ela olhar o que lhe está do lado de fora, através de sua imagem interna, aquela que lhe dá as condições necessárias de elaborar a seu modo e dentro de suas possibilidades o que para ela tem significado para o seu crescimento. As crianças da Casa Redonda costumam pedir aos professores que lhes contem “historias de boca”, isto é, aquelas histórias que carregam um imaginário rico, porque pautado na experiência humana em sua essência.
Flávio Paiva. Observando bem, os grandes clássicos da literatura infantil não foram escritos para criança. Robinson Crusoé, Pinóquio e tantas outras histórias maravilhosas foram criadas por pessoas que tinham a necessidade de contar aventuras. Mesmo nas obras de autores como Jonathan Swift, que fez Viagens de Gulliver, e Monteiro Lobato, autor do Sítio do Picapau Amarelo, que inventaram uma literatura para, na condição de adultos, dizerem coisas às crianças pelo mundo da fantasia, o que prevalece é a honestidade do propósito. Seria esse o tipo de sinceridade que a criança espera encontrar nos livros?
Peo. Creio que sim. Temos que fazer chegar à criança o melhor da criação humana, aquela que acrescenta à nossa alma o grande mistério da vida e nos torna sensivelmente mais humanos, solidários e fraternos. Incluo nessa literatura da oralidade os mitos e as lendas dos povos. As crianças gostam de ouvir uma historia bem contada oralmente, onde não se estampam graficamente para elas as formas estereotipadas que caricaturam determinados personagens, com os quais elas deixam de poder imaginá-los e transformá-los de acordo com sua vivência interna. Sem esta interação, sem que o espaço para esta conversa entre o imaginário da criança
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e o imaginário do autor se dê de uma forma espontânea, a literatura fica devendo à criança e ao próprio autor. A literatura deve entrar no mundo da criança como entra uma brincadeira. Como diz a educadora Lydia Hortélio: “não se deve brincar para aprender. Deve-se brincar para ser feliz”.
Flávio Paiva. A criança que não tem a chance da brincadeira criativa e da leitura tende a ser mais inquieta, mais afeita à violência, ou não há uma relação direta com isso?
Peo. Na nossa experiência da Casa Redonda, a criança tem a natureza como o seu chão e o brincar é considerado o movimento natural das crianças entre 2 e 7 anos, acompanhado pelo olhar e a escuta sensível dos adultos. Podemos afirmar que momentos de confrontos existem, mas eles ocorrem num índice muito inferior à agressividade hoje presente nas nossas escolas, onde as crianças dispõem de espaços pequenos, idades seriadas e atividades definidas por um currículo planejado para 30 ou mais crianças ao mesmo tempo. Esta condição de aprisionamento das crianças em espaços que não lhes permitem brincar movimentando seus corpos em crescimento, seja nas escolas, seja nas suas casas, é um dos fatores determinantes do aumento da agitação e da agressividade infantil. Dadas as condições dessa redução de espaço, é mais cômodo para as famílias, para as escolas e para a própria sociedade colocar as crianças frente à televisão e ou computadores, como um meio de anestesiá-las corporalmente. Assim, elas ficam quietas, não perturbam o ambiente. São capazes de passar horas a fio defronte da tela por ausência de alternativas. O resultado muitas vezes é que ao sair desta situação fisicamente inerte, frente à tela, mas mobilizada pela adrenalina das imagens televisivas e dos jogos eletrônicos, a criança pode vir a desenvolver uma descoordenação de seus gestos e um congelamento de suas emoções, como reflexo da falta de experiência do uso do próprio corpo.
Flávio Paiva. Em algum momento a criança deve passar a receber uma educação formal. Como os pais podem saber o momento ideal para isso acontecer?
Peo. Considerando que o brincar é o processo natural de apropriação do mundo que está à sua volta, eu diria que as crianças deveriam ter, praticamente, 100% do tempo delas brincando, principalmente na primeira infância. A criança brinca porque se desenvolve e se desenvolve
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porque brinca. Esta é sua lei. O ser humano é um aprendiz nato. Basta olhar uma criança brincando que você observa os desafios que ela mesma vai construindo para dar um novo passo em resposta às suas necessidades e seu desenvolvimento. Nenhum educador é capaz de construir um programa de atividades melhor do que aquele que a criança cria para si mesma enquanto brinca.
Flávio Paiva. Que a racionalização sobre a infância é uma construção social não há muito que discutir. Mas é possível dizer que existe mesmo uma cultura da infância, algo que caracterize aspectos da vida coletiva da criança?
Peo. Existe, sim. Compreendo a cultura da infância como uma maneira particular do “ser criança” se apropriar do mundo, que é diferente da cultura do adulto. Nesse sentido, o brincar é a língua comum dessa cultura, a sua manifestação concreta e universal. Os objetos que ocorrem nessa cultura podem ter representações diversificadas, mas se tornam iguais na relação com a criança. Fiz uma pesquisa sobre a pipa, que é um brinquedo que sempre me tocou muito e que me fez indagar sobre a relação céu e terra. De tanto encontrar formatos variados nas diversas regiões brasileiras, um dia eu perguntei a um menino porque as pipas, as arraias, os papagaios, as pandorgas diferiam tanto de uma região para outra. Ele, muito calmo, respondeu que em cada lugar o vento é diferente. Quer dizer, a pipa é diferente porque existe uma relação desse brinquedo com um elemento da natureza e o menino sabe disso; ele sabe pela experiência que a geografia do lugar traz, por uma particularidade no desenvolvimento da brincadeira. Acredito que há um elo vivo que aproxima meninos distantes, de diferentes lugares do mundo, meninos que são mobilizados para uma mesma brincadeira, que são capazes de reinventar gestos novos, que afirmam a presença desta cultura viva que é a infância.
Flávio Paiva. Em termos de construção social, existe uma nova infância que se desenvolve em um mundo onde os absolutos entraram em estágio de desaparição. A educação, antes uma atribuição da família, da escola e da igreja, hoje é feita também pelas redes sociais e pelos meios de transmissão de informações e de comunicação. Independentemente da consciência que esses agentes possam ter ou não das suas responsabilidades, a dimensão educativa ganhou uma espécie de pedagogia do múltiplo. Em que essa variedade de “educadores” pode influenciar
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na função social do brinquedo e como a cultura da infância está reagindo diante dessa realidade?
Peo. Bem, sou uma pessoa otimista, mas realista. O que estamos assistindo nesse momento na maioria das cidades brasileiras é um abalo no cerne da alma da criança, face às transformações aceleradas que estão ocorrendo no meio da família, da escola, da sociedade como um todo, fruto de um movimento de ajustamento de equilíbrio de uma civilização que, ao separar o homem de sua natureza, o conduz a uma visão fragmentada de si próprio e do mundo, priorizando o verbo ter em detrimento do verbo ser. Esta visão descompensada, em sua clara adesão a uma visão racionalista e materialista do mundo, excluiu de suas considerações a natureza como um organismo vivo, a mulher como sujeito sensível e não simples objeto, e a criança é vista como algo a ser estimulado e plasmado pelo adulto através de uma educação cognitivista que rapidamente deve inseri-la no sistema de produção e mercado. Nesse cenário, a cultura da infância é posta na invisibilidade até como reflexão e, conseqüentemente, o brincar como valor de uma cultura é excluído da maioria das famílias e das escolas e a criança passa a fazer parte de um bombardeio de receitas educacionais, onde o bom senso de alguns pais e educadores foi desaparecendo, enquanto a fantasia, a espontaneidade e a sensibilidade passam ao largo das atenções.
Flávio Paiva. E o que fazem as crianças diante desta situação, já que não têm meios para elaborar o que está se passando?
Peo. O que elas fazem? Elas se rebelam com seus gritos, sua agitação, sua inadequação aos métodos. Muitas delas adoecem, somatizando a ausência de um olhar e uma escuta mais atenta à sua infância. Elas apenas querem ser, mas são subordinadas a uma condição de ter coisas, na medida em que vêm sendo transformadas perversamente em objetos de consumo sob um aparato sofisticado de nossos meios de comunicação. Tranqüilizantes estão sendo prescritos juntamente com os rótulos que elas estão recebendo quando querem se rebelar a essa situação. Quando elas se vêem acuadas, recolhem-se, entristecem-se e são encaminhadas para processos terapêuticos, de onde retornam para os mesmos ambientes que as adoeceram, carregando o estigma de crianças-problemas. Não é fácil
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quando um menino de quatro anos chega para você e diz: “Eu queria tanto ser um gato”. ”Meu filho, você queria ser um gato?” “Eu queria”. “Por quê?” “Porque eu queria ter um dono”. Esta criança esta sinalizando de viva voz um recado para nós adultos. Ou quando, uma outra criança, frente à mãe nervosa, estressada pela vida, pede a ela: “Se você não brincar comigo, me mande de volta de onde eu vim!”.
Flávio Paiva. A senhora falou que é otimista, mas realista. Esta é a parte realista. Qual a otimista?
Peo. As mensagens das crianças são várias para os ouvidos que sabem ouvir e para os olhos que sabem ver. Venho observando aqui e ali sinais de uma sociedade que tem tomado consciência de que algo está desviado de seu caminho de saúde e que, se houve uma faixa do desenvolvimento humano das mais prejudicadas por este momento crítico, foi a infância. Tem muita gente que já está escutando esse grito das crianças e dos jovens no Brasil e se movendo para fazer alguma coisa. Tenho visto pais pedindo às escolas que, por favor, deixem seus filhos brincarem em paz em espaços que não prescindam da natureza. Pais que já possuem uma visão aguçada sobre a inadequação dos chamados brinquedos pedagógicos e das chamadas brinquedotecas. Estes pais e alguns educadores já percebem que o brincar não se adequa a horários marcados e a programas que delimitem brinquedos e brincadeiras a objetivos didáticos. O espontâneo não se confina a grades curriculares da educação infantil. Se o brincar for colocado para aprender alguma coisa, imediatamente ele deixa de ser brincar; ele perde sua característica de possuir uma finalidade em si mesmo. Graças a Deus esta consciência vem aflorando no olhar dos adultos, que começam a perceber que brincar é, antes de tudo, afirmar a vida. Se esse tipo de compreensão dos pais e educadores continuar se ampliando, e acredito que vai continuar pois é irreversível este caminho, poderemos estar no limiar de uma mutação importante para a civilização, uma vez que, se a cultura da infância desaparecer, se nesta iniciação ao humano não prevalecer a liberdade do brincar, estaremos pondo em perigo a sobrevivência de nossa espécie. Então, o empenho de todos nós para fortalecermos a cultura da criança é, na verdade, apostar em nossa humanidade constituída de seres que vêm ao mundo essencialmente para expressar a alegria de viver e não apenas sobreviver.
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Este ensaio-entrevista foi publicado originalmente na revista Diálogo J.Macêdo, edição de set/out de 2008. Fortaleza, Ceará.