CAPA DA PUBLICAÇÃO
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O poeta curitibano Paulo Leminski (1944 – 1989) está para a inventividade poética como um praticante de esporte extremo está para o desafio da noção de perigo. Com um cérebro sempre excitado com as possibilidades poéticas que o mundo oferece, deixou uma obra resultado da inquietação que o levava a redesenhar padrões estéticos, jogando-os em outros corpos de interpretação, alterando a noção dos espaços de dizer e de escutar.
No jogo com palavras, imagens e sons, Leminski se colocava como alguém sensível ao prazer do insight, do nonsense, das descobertas, das revelações, das novidades fruto da atividade desafiadora, do evoluir das combinações semióticas e da sensação de explorar radicalmente às margens, onde vicejam as ambiguidades e as polissemias.
Criador experimental, biógrafo existencialista, desconstrutor de discursos totalizadores e praticante de uma poética plástica e elástica, ele aproximou significados e sensações pelo movimento fluido das palavras, dos traços e da sintaxe visual. Lançou mão da liberdade de linguagem como exercício efetivo da liberdade de pensamento e largou tudo para quem quisesse tirar novos sentidos do seu trabalho.
quando o sentido caminha
a palavra permanece
Paulo Leminski desenvolveu sua obra em tino processual, o que a pôs em sintonia com a tendência do surgimento da diferença como um
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valor nas relações globais. A segunda metade do século passado (séc. XX) foi um tempo de ressignificações, quando, diante do despertar para as questões ambientais e geopolíticas, o conceito de universal passou a ser substituído pela consciência do plural e do diverso, em um cenário de multipolaridades.
A poética resultante do estado de fluxo do autor de O Gozo Fabuloso revela a força da intermistura presente em uma espécie de altivez por ser um mestiço original, com sotaque curitibano e, ao mesmo tempo, abençoado pela abundância de códigos produzidos pelos arranjos socioculturais e históricos que possibilitam ao Brasil ser uma sociedade aberta, múltipla e criativa.
Na análise da pesquisadora Elizabeth Rocha Leite, da Universidade de São Paulo, o modo de representação poética de Leminski leva à reflexão sobre três caminhos que só se complementam na construção do sentido: “O da temporalidade, o da espacialidade e o do movimento (…) São signos que se mostram em sua própria materialidade, ou seja, expõem seus suportes sonoros, gráficos ou verbais” (LEITE, p.30).
O senso instigante de múltiplo pedia um lugar para a voz do poeta, que tinha orgulho de falar com sotaque curitibano. Em um texto para a revista Leite Quente (Fundação Cultural de Curitiba, 1989), escreveu que “a fala curitibana é desornada de aparatos musicais berrantes, é seca e concisa, como o conjunto de pertences de um tropeiro, como a araucária imóvel ao vento, como gosto do pinhão, nossa fruta totêmica. Mas a linguagem não é só palavras (…) É também o jeito corporal de dizê-las, o estoque de gestos (…) Curitiba não fala bonito. Fala exato (…) isso se deve, em parte, talvez ao fato de que, realmente, boa parte da massa imigrante aprendeu português em livros, mais lendo do que escutando” (LEMINSKI, A. p.15).
Seguro de que tinha um torno, um ponto de observação do mundo, Paulo Leminski pôde vagar, caminhar pelas margens da ordem estabelecida para o pensamento e para a poesia. Palmilhou as alternativas de desvios e embrenhou-se em si mesmo. Nas margens vai-se para onde se quer, não há sinais de trânsito, pontos de ultrapassagem demarcados ou avisos de curvas acentuadas. Em sua errância pela vastidão das margens, viu no grafite uma expressão de muro que expande as ruas como páginas de imensos livros públicos, e, na tradução, um amor ao jogo de formas de manifestações nos diferentes idiomas.
Queria ser identificado em seu viço como a força inata das árvores, que afundam raízes e estendem galhos, dão flores e produzem frutos, e, assim, dizem com dignidade o que são. Nesse aspecto, Leminski foi o que a botânica chama de planta pioneira, desbravadora, aquela que torna fértil os terrenos áridos, com a compulsão de espalhar sementes poéticas nos campos do remix estético e cultural, onde o mundo, contudo, libera poréns, trilhos de trens, andares em noite de ilusão, clarão de luar, assobio do si, saci no redemoinho da palavra em curso, correnteza de texto-fonte, reuso, nova palavra, ponte da lavra.
Paulo Leminski é um bom exemplo de paradoxo das motivações culturais em um país colonizado ruminante. Ao escapar da mentalidade de seguidor, ainda fortemente predominante nos modos de ser, sentir e atuar da vida intelectual, midiática e artística
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brasileira, ele direcionou sua energia inventiva para desvendar a amplidão das margens, onde os impulsos culturais são mais abundantes e desnorteadores. Sua vida e obra atestam a observação de Ruth Benedict (1887 – 1948) na perspectiva de que “as culturas são mais do que a soma dos traços que as compõem” (BENEDICT, p.42).
vazio agudo
ando meio
cheio de tudo
Os estudos da antropóloga estadunidense demonstram ainda que em cada cultura surgem propósitos característicos não necessariamente compartilhados por outros tipos de sociedade, o que tem total equalização com as motivações e emoções geradoras do antipadrão mestiço desenvolvido por Leminski em suas manifestações de fluxo poético contínuo e renovado por recursos semióticos sonoros, visuais e gráficos, aos quais ele recorria como plataforma de comunicação.
Correlacionando em si diversas facetas, ele confirmou a tese de Benedict no que diz respeito a não existir antagonismo propriamente dito entre o papel da sociedade e o do indivíduo. O que há de distinção está no potencial de cada um em fazer a diferença. Assim sendo, para ser e se mostrar à altura das suas possibilidades, Paulo Leminski cuidou de não cair na armadilha dos dualismos; não se intimidou frente às desvantagens estruturais regulatórias e às prescrições para a poesia e para a arte.
A imagem da cabeça de pato/coelho em um só traço, utilizada pelo pensador austríaco Johann Wittgenstein (1889 – 1951) nos escritos sobre Investigações Filosóficas, reproduzida por Elizabeth R. Leite em seu livro Leminski, o Poeta da Diferença (p.113), mostra a possibilidade de uma interpretação paradoxal, à medida que o signo questiona os limites teóricos da linguística clássica, em que cada significante corresponde a um significado. Essa referência vem mostrar a riqueza dos ícones para a interpretação, extrapolando a racionalidade, o que se adequa à compreensão dos parâmetros perceptivos de Paulo Leminski.
Com as mãos na massa dos impulsos estéticos coexistentes, o poeta curitibano enveredou pela alteridade transcultural, que permite ver como o outro veria, e pela atemporalidade existencial, que abre o tempo a novos enquadramentos, angulações e pensamentos, corroborando com o pensamento de Benedict: “Só o inevitável atraso cultural é que nos faz insistir em que se deve redescobrir o velho no novo, que a única solução é achar a certeza e a estabilidade dos velhos tempos na nova plasticidade” (BENEDICT, p. 187).
O esteta gaúcho Flávio R. Kothe, referindo-se à necessidade de as pessoas saírem das quatro paredes de suas áreas de atuação, a fim de não acabarem confinadas, coloca as margens como um espaço fundamental para que se veja o que importa de maneira ampla. Da mesma maneira que Ruth Benedict, Kothe alerta para o risco de o conhecimento acabar servindo para que não se conheçam as coisas. E, à moda Leminski, faz a sua síntese: “O saber que não sabe onde se funda logo se afunda” (KOTHE, p.60)
E onde se funda o saber da poesia leminskiana? Ora, como expressão de uma consistência existencial, feita no percurso da experiência e suas possibilidades.
um poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
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Esses versos do poeta fazem as vezes de resposta a essa questão e reforçam o quanto a qualidade e o vigor do que se produz está nas pessoas e seus repertórios de vida, e não em suas áreas de atuação, como constata Kothe. Sobre esse ponto, o professor gaúcho, da Universidade de Brasília, afirma que a atração de algo se dá na diferença entre questionar e se acomodar. E, como Leminski nunca se acomodou diante do que era e do que fazia, ele quis ir além dos limites da linguagem, por saber que estes são também os limites do ser no mundo.
Escreveu ensaios, fez traduções, tornou-se um poeta cult e pop do vasto ecossistema das margens, sem o medo geral da teoria de chegar ao topo da pirâmide do conhecimento e sofrer vertigens do isolamento intelectual, o que Flávio R. Kothe chama de lugar onde se pode aprender a morrer ou a voar. Na sua produção de escritos, o poeta curitibano voou em busca de novos horizontes, sem temor das alturas, em fluxo poético que “sacode as pessoas para além do seu cotidiano imediato” (KOTHE, p.62), criando oportunidades de pensar, sentir e de ver em outras dimensões.
Entretanto, para ir tão além do cotidiano, Paulo Leminski se valia de situações corriqueiras. Era do detalhe do viver que ele tirava as grandes sacadas transformadoras do seu trabalho. “O interesse central do crítico-poeta é compreender as relações entre vida, linguagem e pensamento” (LEITE, p.27).
tudo dança
hospedado numa casa
em mudança
Ainda à luz do pensamento de Kothe, procuro ver a obra leminskiana no campo livre da ideia, do espírito largado e da revelação sensível. Ela não está “nem no horizonte do conceito e nem da imagem: está acima deles, passando por ambos” (KOTHE, p.63). Sendo ideia, eu diria que é também conhecimento não-conceitual, linguagem em exercício de liberdade criativa, traduzida reciprocamente entre o que está dentro do autor e o que está fora dele. A obra de Leminski, por analogia e por contraste, traz a simplicidade dessa complexa significação: “A imagem diz coisas que o conceito não consegue, enquanto o conceito diz coisas que lhe são próprios e que não ficam tão claras na linguagem imagética” (KOTHE, p.66)
Ao assumir e experienciar a aventura do ser pessoa, na integralidade com o simbólico e o imaginário, e não apenas do ser humano enquanto espécie, a figura do Paulo Leminski me lembra da independência ousada do pensador esloveno
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Slavoj Žižek em seu destemor estilístico e liberdade intelectual fecunda. Ambos apresentam em seus trabalhos uma compulsão básica do gozo pelas fronteiras da subjetivação e pelo impulso de superar as barreiras identitárias da ordem significante, sempre com prazer estético e subordinando o racional ao sensorial.
Em um vaguear que passa pela filosofia antidogmas do filósofo germânico Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) e pelas conversas do inconsciente roteadas pelo psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), Žižek e Leminski encararam o impossível armados do entendimento de que a realidade é feita das coisas concretas, simbólicas e imaginárias integradas. É o que a professora inglesa Glyn Daly, estudiosa de “Imaginações Globais: Ideias e Identidades”, conceitua de loucura constitutiva do ser: “O Real real é a experiência dilacerante da negação (os meteoros, os monstros, os turbilhões do trauma). O Real simbólico, em contraste, refere-se aos códigos e/ou estruturas anônimos (pontos de fuga, curvatura do espaço, fórmulas científicas etc) que não têm sentido em si (…) O Real imaginário, no qual há uma ênfase num toque invisível-imanente que dá estrutura e especificidade ao corpo do Imaginário” (ŽIŽEK e DALY, p.16 e 17).
Diferentemente de Žižek, Leminski não gastou energia opondo-se diretamente às posturas padronizadas da hipermodernidade, embora, como o pensador esloveno, certamente as considerava hipócritas em sua etiqueta multicultural. Neste aspecto, o poeta curitibano optou por lançar mão da diversidade para dar fluxo à sua poética invocada e afeita ao universalismo possível, com orientação filosófica espirituosa e um deliberado ímpeto pela rarefação dos referentes. Fez isso se movendo para fora de si mesmo e realizando o que lhe dava satisfação estética.
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
Determinado a ser o que era, Paulo Leminski procurou se encontrar em quatro
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modos de vida inspiradores da sua compreensão de si, quatro modelos de pessoas que deram à vida um fluxo poético, quatro habilidosos com a palavra, com os símbolos e os sonhos, quatro personalidades inquietas e fazedoras. E para cada uma delas escreveu um ensaio-biografia: Cruz e Sousa, o negro branco; Bashô, a lágrima do peixe; Jesus, a.C; e Trótski, a paixão segundo a revolução.
Em Cruz e Sousa (1861 – 1898), poeta brasileiro simbolista, Paulo Leminski deparou com a tensão da vida dupla de alguém nascido na escassez da senzala e criado na fartura e no total acesso aos bens abstratos da casa grande; com a forma como ele expressava o pensamento por imagens, causando efeitos disruptivos no sentido das palavras; e com sua fecunda produção de poemas sobre a loucura: “Tu és o louco da imortal loucura / O louco da loucura mais suprema (…) Tu és o Poeta. O grande Assinalado / Que povoas o mundo despovoado”.
Matsuó Bashô (1644 – 1494), mestre japonês da poesia-síntese, ganhou a cumplicidade de Leminski pelo encantamento de uma vida errante de viajor atrás de luas, lagos e templos dentro de florestas, na busca do “vaga-lume do haicai” e sua possibilidade plástica de grafia da atenção ao que é aparentemente insignificante; pela moral samurai do guerreiro idealista, capaz de dar a vida por um código de honra; pela ética confucionista da supremacia do social sobre o individual; pelo pensamento zen; e pelo princípio de que a vida se realiza na virtude dos atos.
Na vida de Jesus Cristo (início do calendário cristão), o poeta curitibano foi buscar o fascínio entre a subversão da ordem vigente e a proposta de utopia, pregada com metáforas e apólogos, suportada por uma sofisticada estética da recepção e pela transmissão do pensamento por imagens, adequadas ao universo dos pequenos lavradores e pescadores: “O que digo a vocês nas trevas, digam na luz, e o que vocês ouvem, ao pé do ouvido, proclamem sobre os telhados” (Mateus, 10,27). Para Leminski, Jesus é um signo de leitura infinita. E cita a multiplicação dos peixes como um dos seus milagres portadores de multiplicação também infinita de significados.
A admiração por Leon Trótski (1879 – 1940), intelectual e político ucraniano, um dos líderes da revolução russa, está associada à persona do revolucionário como um apaixonado que luta pelo poder, mas abraçado a uma ideia. Ao dizer que “Trótski era um dispersivo, homem de mil interesses, que ia do político ao militar, do literário ao cultural”, Leminski, que foi adepto da contracultura, vai mais além e traz à tona um contrassenso fundado na irônica situação de que somente os bem alimentados têm as condições efetivas de lutar pelos famintos. E mostra como o seu biografado fez a metamorfose dos valores da classe média, apro-
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ximando seu estilo de vida ao discurso transformador.
um brilho antigo
brinca comigo
de anos atrás
A vida e a obra de Paulo Leminski subvertem uma certa noção de cidadão do mundo como alguém viajado, territorialmente falando. Para entrar em sintonia global – isso antes do advento da internet – não precisou sair do Brasil nenhuma vez, ou melhor, não passou sequer dos arredores de Curitiba, num raio cuja maior distância alcançou São Paulo e Rio de Janeiro, numa direção, e Florianópolis e Curitiba, em outro rumo.
Essa capacidade de sentir e entender o mundo e de trabalhar as representações subjetivas da percepção como satisfação intelectual presente em Leminski, associo ao gênio de Immanuel Kant (1724 – 1804), que construiu uma das obras filosóficas mais cosmopolitas da humanidade, sem nunca ter saído da Alemanha, ou melhor, de um raio de algumas dezenas de quilômetros dos limites de Königsberg, onde nasceu.
No fundo, o que essas experiências revelam é que o mundo pode estar bem dentro de cada um de nós:
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
Leminski era um sintetizador e um dínamo cultural, com trajetória que se estendeu de vivências em mosteiro a convivências de boteco. Nesse fluxo entre a reza e a vodca, ele produziu sua poética analógica e versos aforísticos para todos os sentidos, com ritmos e traços espalhados na diversão das palavras, dos grafismos, dos poemas visuais, da montagem ideogramática e do pensamento, tornando-se uma figura ímpar com sua marca própria dos bigodões.
Movido por variados interesses, o poeta fazia de tudo. “A versalitidade de Leminski põe em cena na escrita uma extensa gama de personas: o artista pop tropical, o pensador zen, o latinista erudito, o hippie, o beatnik, o revolucionário, o intelectual cosmopolita, o boêmio, o grafiteiro, o tradutor, o comunicador, o poeta marginal-concreto” (LEITE, p.92). De ensaísta a roteirista de Histórias em Quadrinhos, um artista que “por ser tantos é único” (RUIZ, p.74).
Como articulador de fonemas, processador de significados e tocador autodidata de violão, Leminski também compôs e teve poemas musicados por diversos artistas, a exemplo de Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Vitor Ramil, José Miguel Wisnik, Guilherme Arantes e Moraes Moreira. Foi gravado, entre outros, por Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Suzana Salles, Arnaldo Antunes e Paulinho Boca de Cantor.
Esse trabalho musical disperso foi reunido em CD duplo pela filha Estrela, em parceria com Téo Ruiz, sob o título Leminskanções (2014). Estão lá composições como Filho de Santa Maria: “Aqui estou eu pra te proteger / dos perigos da noite e do dia (…) Se Dona Maria soubesse / que o filho pecava / e pecava tão lindo”. No songbook, composições Xixi nas Estrelas: “Quem foi que disse / que eles podem vir aqui / Nas estrelas fazer xixi”; e Dor Elegante: “Um homem com uma dor / é muito mais elegante (…) Ópios, édens, analgésicos / Não me toquem nessa dor / Ela é tudo o que me sobra”.
Na literatura foram também muitas incursões invocadas. No catálogo das exposições
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itinerantes Múltiplo Leminski há um destaque para Metaformose (1994) como um livro que começa a singularidade pelo título: “A palavra é uma transformação, uma metamorfose da própria palavra metamorfose” (RUIZ, p. 46). Nesses escritos, o poeta faz uma viagem pelo imaginário grego.
Evidente que qualquer referência à obra de Leminski passa por Catatau, um “romance-ideia” que trata da ficcional chegada do filósofo René Descartes (1596 – 1650) na costa pernambucana, como membro de uma expedição do colonizador holandês Maurício de Nassau (1604 – 1679), simbolizando o desembarque do pensamento em eixo “x” e “y” no teatro brasileiro das coisas naturais e culturais, aquele tão bem representado nos desenhos e pinturas de Albert Eckhout (1610 – 1665), que integram o acervo da Biblioteca da Cracóvia, na Polônia, onde estão as raízes familiares de Paulo Leminski.
Catatau traz um questionamento basilar, bem leminskiano.
vai me ver com outros olhos
ou com os olhos dos outros?
Esse turbilhão de inventividades, em misto de vida e obra, foi possível porque contou com a disciplina de quem escrevia rigorosamente todos os dias, nem que fosse um poema curto, uma frase, uma ideia. “A combinação entre de um lado a disciplina rigorosa e estudos aprofundados, e de outro a vida boêmia e o lado mais relaxado, incorporando a contracultura e o zen” (RUIZ, p.44).
Paulo Leminski tinha claro a sua condição de renovador da poesia no Brasil e do quanto isso levaria um tempo para vingar, por isso procurava acentuar a sua espera com um refinado sarcasmo. “Ciente de suas limitações, o poeta resiste ao mundo contemporâneo e oferece o que tem de melhor no seu aqui e agora ao re-signar sua linguagem e transformá-la em sopa para o público convalescente da era pós-metafísica, em que as grandes narrativas se desconstroem” (LEITE, p.109).
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
A compreensão de Leminski sobre a vulnerabilidade cultural de quem vive pela plenitude das margens aparece em sua obra nas figuras dos santos e dos loucos. “Santos são aqueles que mantêm comunicação privilegiada com alguma transcendência (…) Parece constituir a santidade em certa entrega a um princípio (…) Sempre haverá santos. Santos artistas, santos poetas, santos atletas (…) carregando acesa a chama de uma ideia” (LEMINSKI, P. p.95).
Atento à pressão da censura aos instintos, olhando inclusive para si, ele aborda a situação dos loucos:
dois loucos no bairro
um passa os dias
chutando postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel em branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
Os “loucos” poetas e artistas têm, nos estudos de saúde social, um lugar como região de espanto tanto e tão vitalmente necessário quanto o ar que respiramos. David Cooper (1931 – 1986), líder sul-africano do movimento anti-psiquiatria, segundo o qual as nossas maiores forças revolucionárias são a loucura, o orgasmo e a morte recuperada (COOPER, p.154), incluía a “loucura” dos artistas como uma necessidade humana comparada ao orgasmo; como propriedades sociais comuns, que favorecem
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a criatividade e a espontaneidade dos laços comunitários.
Não é fácil recuperar o que nos é roubado pelos discursos condicionantes. Cooper dizia que invariavelmente atuamos em circos ou em campos de concentração. Paulo Leminski atuou no circo com a liberdade dos que não querem impor novas crenças, apenas qualificar as margens – e isso já é muito –, potencializar suas oportunidades ocultas, dar plenitude a outros modos de ver, sentir, pensar, expressar-se e agir. Dar força de linguagem aos contextos deslocados do viver por ordenações lógicas redutoras do prazer.
O espírito da plenitude das margens em Leminski está evidente nos títulos de alguns de seus livros de poemas, nos quais ele abre a gaiola das palavras e solta os sentidos. É o caso de Distraídos Venceremos (1987) e O Ex-estranho (1996). Em La Vie en Close (1991), seus poemas, haicais e prosa se unem para libertar o sentido de zoom, tendo carga emocional e conceitos estéticos inspirados no clássico La Vie en Rose (Edith Piaf / Louis Gugliemi), da canção francesa.
Abrir opções por meio de palavras e figuras e seu poder de desnormalizar a linearidade das leituras do mundo proporciona outras percepções do discurso dito normal. Neste ponto, a obra de Leminski tem muita força por ser “conscientemente intertextual, autorreferenciada, e apresenta como questão central a relação entre pensamento, mundo e linguagem” (LEITE, p.21). Ademais, no que diz respeito à “morte recuperada”, o poeta experimentou “em vida uma morte suficientemente completa” (COOPER, p.30), finalizada com os efeitos de uma cirrose hepática.
Em sua comparação da expressão artística com o orgasmo, como recursos de anulação da rigidez social, David Cooper esclarece o que o motiva a colocá-los no plano da loucura, enquanto desconstrução: “Não é a loucura como uma espécie de crise pessoal trágica, mas como renovação de si por um caminho capaz de romper com as regras obsessivas do que devemos ser” (COOPER, p.54).
Ao exercitar sua poética de loucura estética, Leminski, como no orgasmo de Cooper, criou possibilidades para seus leitores abandonarem
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determinadas posturas da mente, a fim de poderem experienciar a necessidade de contemplar outros conceitos e mensagens em estado de abandono. Isso incomodou muita gente, a ponto de ele reagir. “O poema que mais o identifica, e funciona como assinatura, é escrito ironicamente na voz dos que nunca o perdoaram por sua genialidade” (RUIZ, p.32).
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo e pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
Leminski foi mestre na loucura como instrumento do mudar. “Para ele, o poema não poderia ficar somente assistindo passivamente ao desenrolar dos fatos” (LEITE, p.81). Assim, transitou pelos concretos, pelos modernos, pela poesia social, oriental e beatnik até chegar ao estado de inclassificável. Seu modo poético de pensar e de fazer poesia não permitiu que ele ficasse parado em qualquer das fontes onde bebeu. Desceu na correnteza, por ser água corrente, transbordando pelos afluentes, pelos alagados e vazantes, independente dos caprichos do leito do rio.
A poética do fluxo leminskiano se expressa como ato entre códigos e domínios de grande plasticidade. Sem renunciar ao prazer da criação, ele conseguiu reconhecimento como um dos principais poetas, artistas e intelectuais brasileiros. É best-seller de poesia, com tradução para o inglês, francês, polonês, alemão, italiano, húngaro e espanhol e, além do Brasil, publicado na Hungria, no México, nos Estados Unidos, em Cuba, na Espanha e na Polônia. Paulo Leminski conquistou esse lugar porque trabalhou muito, teve paciência diante das incompreensões e soube, como poucos, fluir pela plenitude das margens.
REFERÊNCIAS
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Petrópolis: Vozes, 2013.
COOPER, David. El lenguaje de la locura. Barcelona: Ariel, 1979.
KOTHE. Flávio R. Ensaios de semiótica da cultura. Brasília: UnB, 2011.
LEITE, Elizabeth Rocha. Leminski, o poeta da diferença. São Paulo: Edusp, 2012.
LEMINSKI, Áurea e LEMINSKI, Estrela. Meu coração de polaco voltou – Origem e influência polonesa na obra de Paulo Leminski (catálogo da exposição). Curitiba: Casa da Cultura Polônia Brasil, 2015.
LEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski – 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
RUIZ, Alice, LEMINSKI, Áurea e LEMINSKI, Estrela Ruiz (org). Múltiplo Leminski – catálogo de exposições realizadas sobre a vida e obra de Paulo Leminski. Curitiba: Whols, 2015.
SANDRINI, Estela, RUIZ, Alice e SANTANA, Ivan Justen. Múltiplo Leminski. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2013.
ŽIŽEK, Slavoj e DALY, Glyn. Arriscar o impossível – Conversas com Žižek. São Paulo: Martins Fontes, 2006.