Introdução e Capítulo 1 do ensaio biográfico que em 2011 escrevi sobre os meus pais, livro que acompanha CD com o repertório musical da Missa Sanfonada que compus para eles em 2004.

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INTRODUÇÃO
Cheiro de terra molhada

Estou contente por ter conseguido reunir neste trabalho um pouco do que guardo da memória dos meus pais desde os seus sete anos, como se abrisse uma ampla janela sensorial e radicalmente humana a essas passagens das suas vidas, no momento em que ele, Toinzinho, completa 90 anos e ela, Socorro, se aproxima dos 75 anos.

Tenho consciência de que, mesmo procurando ser o mais fiel possível às minhas recordações e às recordações que os meus pais transferiram para mim, os relatos que passo a compartilhar chegam “ficcionalizados” pelo transcurso das décadas. O que mais me parece valioso, entretanto, nesse exercício de contar das nossas raízes e antenas é a memória dinâmica que eleva o nível de significado do que somos, sentimos e pensamos.

Procurei delimitar os aspectos que mais me pareceram facilitar a compreensão do perfil dos meus pais, no que deles guardo de lição e no que tento aproveitar de aprendizagem para passar aos meus filhos, em termos de contradições de dores, prazeres, rejeição, beleza, frustrações e conquistas; o que me levou a deixar fora deste recorte um sem-número de histórias e abordagens.

É certo que, independentemente da minha intenção, a narrativa carrega por si a fluidez de uma época, de um lugar, seu cheiro de terra molhada, suas pessoas e razões, com desfecho para ir mais adiante do ponto final. Meus pais foram criança na

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primeira metade do século XX e meus filhos na primeira década do século XXI.

Como parte do meio desse caminho, observo de dentro a nossa paisagem comum e terei alcançado o objetivo dessa publicação se ela conseguir transmitir um pouco que seja de uma essência cultural que não se esgota nas palavras em que se inscrevem.

Embora sem preocupações aforísticas, ao registrar no Capítulo I (Sementes de alma e paixão) situações que podem contribuir para a compreensão do ethos dos meus pais; no Capítulo II (Baião na Manchete) sentimentos das suas vidas familiares, comunitárias e ecológicas; no Capítulo III (Missa Sanfonada), traços de uma espiritualidade ardente e profunda; e no Capítulo IV (Alegria do sertão em flor), declarações públicas de amor e gratidão, pretendo com estes escritos assegurar o fio da nossa meada evolutiva para que as lembranças não percam suas pontas no tempo.

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Cap. I – Sementes de alma e paixão

O rapto da donzela

Quando o meu pai, Toinzinho, tinha sete anos, ele passou por uma situação de afastamento da infância, que foi determinante em toda a sua história de luta entre o homem rústico das labutas sertanejas e o ser humano de refinada inspiração existencial.

Sempre resistente e constantemente em busca de luminosidade. Quem conhece bromélia sabe do que estou falando. É uma planta linda, colorida, mas pontiaguda, armada para o que der e vier. Assim aprendi a ver o meu pai.

Nessa época, no ano de 1928, ele morava em um lugar chamado Várzea da Cacimba, no semiárido cearense, onde nasceu. Não sabia nada do que poderia estar acontecendo além dos arredores do Morro Agudo e do Irapuá.

A casa de taipa ficava à margem de um rio e do outro lado do rio morava o seu avô Possidônio. Era difícil passar água por ali, chovia pouco e a água normalmente era retirada de cacimbas, inclusive para os animais.

Todo dia pela manhã, o menino que era o meu pai ia para a casa do seu vovô e ficava brincando por lá até perto do meio-dia, quando voltava para almoçar em casa.

Mas o avô dele morava lá há pouco tempo. Estava arranchado com suas cunhadas na casa de um caboclo, enquanto se preparava para fazer a própria casa.

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Era uma comunidade de criadores de gado, ovelhas e cabras. As pessoas se conheciam, se protegiam, se ajudavam, mas tinham lá também suas limitações. Uma dessas limitações era a dificuldade de reconhecerem os diferentes: branco era branco, caboclo era caboclo e negro era negro.

Pois não é que uma das cunhadas do Sr. Possidônio foi se apaixonar logo pelo caboclo da casa onde eles estavam hospedados! E o caboclo também caiu de paixão por ela. Sendo ele filho de branco com índio e ela uma donzela branca, o amor deles não tinha como ser aceito.

Ora, veja só, quando acontecia um caso assim, o jeito que as pessoas encontravam era o rapaz roubar a moça para forçar um casamento. Foi o que aconteceu numa madrugada sem lua, quando o casal fugiu em uma mula, ele tocando o animal e ela na garupa.

No que amanheceu o dia, o Sr. Possidônio já estava muito irado quando chegou um homem para avisar que a moça roubada estava em sua casa, a algumas léguas dali. O avô do meu pai ficou mais enraivecido ainda e disse:

– “Eu não quero mais nem ver ela. Misturou-se, pode deixar ela para lá. E vamos sair da casa dele”.

E Possidônio reuniu as cunhadas que moravam com ele e foi morar numas moitas de mofumbo, onde armou uma pequena barraca para acampar. O mofumbo permite pequenas sombras frescas e quando está florido é a planta preferida das abelhas que fazem mel na caatinga, como a jandaíra.

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Carvão na parede branca

Desde o dia em que decidiu deixar a casa do caboclo que roubara sua cunhada, Possidônio apressou-se para construir a própria casa. E fez uma casona bonita, toda de tijolo e com as paredes de fora caiadas. Em um lugar onde todas as casas eram de taipa, a do Sr. Possidônio passou a ser um luxo.

O meu pai continuou com o mesmo hábito de antes, indo para a casa do avô todos os dias. Sempre pela manhã. Um dia, porém, ele pediu ao pai dele, Manoel Rodrigues (1894 – 1988), para ir à noite. O argumento foi convincente. Era tempo de fogueiras, festas juninas e todos foram dormir de madrugada.

O “Seu Manoel”, como comumente se tornara conhecido, não fez objeções e o meu pai dormiu pela primeira vez na casa do avô. E foi na casa nova. Ele estava encantado. Acordou cedo, com o dia raiando. O Sr. Possidônio tinha ido até a cacimba olhar um gado que estava bebendo por lá.

Sentindo-se o mais feliz dos meninos, meu pai caminhou no sentido do local onde ainda restavam as cinzas das fogueiras. Não sabia o que fazer com a alegria e resolveu pegar um pedaço de carvão e com ele fazer um desenho em todo o oitão da casa, que é a parede lateral.

O devaneio durou pouco. De longe, ele ouviu o avô gritando que aquilo não se fazia. Meu pai escondeu-se debaixo de uma mesa, de onde ouvia o avô esbravejar:

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– Cadê ele? Quero dar uma surra nele?”

Fico imaginando o medo que o meu pai sentia naquele momento. Surra no interior era surra mesmo. Podia ser de chicote, de cinturão, de cipó e até de relho de açoitar animais.

A situação teve um instante de alívio, ao passo que o meu pai viu se aproximar um tio dele, que era também seu padrinho. Conversando bem baixinho consigo mesmo ele dizia:

– Quando o meu padrinho Oliveira chegar, ele vai me livrar dessa surra.

Qual o quê! A coisa fez foi apertar. O tio-padrinho, ao tomar conhecimento do riscado de carvão na parede da casa, ficou bravo também. Daí, o menino que era o meu pai Toinzinho entrou em desespero e partiu de baixo da mesa como um gato maracajá acossado. Saltou uma cerca, correu pelos matos secos e foi para casa.

O Sr. Possidônio e o Sr. Oliveira contaram tudo ao Sr. Manoel Rodrigues, que era o pai do meu pai. Ele disse que em vez de dar uma surra nele, iria resolver o problema de uma vez por todas.

– Ele fez isso porque não tem o que fazer. Vou dar um sistema dele ficar aqui trabalhando o dia todo, de um jeito que ele nunca mais vai fazer malinação.

Foi assim que o meu pai ficou proibido de brincar. Daquele dia em diante, ele, com sete anos, passou a ser o vaqueiro da criação, tendo que pastorear os bodes e os carneiros o dia todo e à tarde tangê-los para o curral, separando os borregos das ovelhas e os cabritos das cabras de leite.

Para completar essa mudança, determinante no comportamento do meu pai, o pai dele, meu avô Manoel Rodrigues, comprou a fazenda São João, em outro lugar do Município de Independência e se mudou para lá com toda a família.

A nova fazenda tinha casas de tijolo, uma mata nativa bem conservada e boas áreas férteis. Foi para lá que, por léguas e lé-

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guas, o meu pai deu conta de vaquejar a pé todo o rebanho ovino e caprino.

Na chegada, com muita fome, o menino Toinzinho comeu pela primeira vez uma batata-doce cozida. Aliás, comeu muitas batatas-doces cozidas. Era um alimento diferente, mas ele achou gostoso.

Retornou ao trabalho e levou a criação para comer a rama que havia numa área de baixio, que, apesar da seca, ainda se mantinha molhada por trás de um juremal. Para essa tarefa, contou com o Deusim, o filho de um morador da nova fazenda, um pouco mais velho do que ele.

No caminho, eles passaram por um monturo e encontraram uma lata de doce, num formato circular; um tipo que vez por outra chegava ao interior. Tiraram a tampa e o fundo da lata, colocaram duas varetas em cada uma e, enquanto pastoreavam os animais, resgatavam a infância brincando de carrinho. Vrrrrrruuuuu!

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A casa da Mãe Mena

Antes de contar da grande desventura ocorrida na vida do meu pai, aos 23 anos, vou relatar um pouco da história da minha mãe, Socorro, quando tinha sete anos.

Nessa época, em 1944, a minha mãe morava na fazenda Altamira, lugar que hoje está submerso nas águas do açude Jaburu, em Independência. Assim como o meu pai fazia quando tinha sete anos, ela ia todos os dias brincar na casa da avó dela, a Mãe Mena.

Era uma casa de tijolo, mas não era caiada. Tinha alpendre, uma cumeeira bem alta, quatro janelas no oitão e uma ampla cozinha separada por uma calha de flandres que servia de bica para aparar água e para tomar banho em dias de chuva.

A Mãe Mena criava gado, ovelha, cabra, galinha, peru e capote. Plantava milho e feijão e fazia canteiros de coentro, cebola e alho. Fazia tranças de alho e cebola e pendurava ao sol para secar.

O galinheiro era enorme. As galinhas eram criadas soltas, mas passavam por uma quarentena para limpar o organismo antes de serem abatidas. Já os frangos eram castrados e colocados para engorda.

Mesmo assim, só se comia galinha quando tinha visita ou era o aniversário de alguém. Como não era fácil comprar macarrão naquele tempo, comia-se macarronada apenas aos domingos.

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Nos outros dias da semana, a comida era baião-de-dois, banana, ovo, carne assada, feijão, arroz, toucinho e farinha. Para o jantar era comum o mucunzá salgado, feito com caldo branco engrossado com queijo ou nata. Tinha também a coalhada com rapadura ralada. Podia ser ainda tapioca com queijo e café.

No dia em que matavam porco, a festa era grande. Do sangue era feito o chouriço, uma iguaria com erva-doce, castanha de caju e gergelim, preparado em tacho de bronze sobre trempes de barro. Parte da carne era torrada em uma panela, na qual ficava por uma semana conservada na gordura, e a outra parte era salgada para guardar. O toucinho era derretido para fazer banha e com ela cozinhar tudo o que se cozinhava naquele tempo.

Todo dia a Mãe Mena fazia queijo. Queijo de coalho, feito na prensa. Depois de desidratados ao sol, esses queijos eram colocados em uma tábua bem grande, pendurada no teto da casa por cordas de couro que passavam por cuias feitas de cabaça, evitando a descida de ratos.

À medida que os queijos iam ficando muito velhos e com a casca muito seca, a Mãe Mena raspava bem a casca e os cozinhava no soro quente dos queijos novos, para ficarem frescos novamente. Quando ela os tirava do tacho, enxugava tudo com um pano bem limpo e em seguida colocava-os ao sol, mantendo o sabor de queijo curtido.

A minha mãe adorava ir para a casa da Mãe Mena, também, porque a irmã dela, a minha tia Nilda, era criada pela avó e morava lá. É bom dizer que uma pessoa criar o filho de outra era algo bem comum no sertão. Essa prática não era vista como um abandono ou desamor, mas simplesmente como uma realização de compartilhamento de vida comunitária.

À noite, elas brincavam com as primas e os primos no terreiro da casa, que era bem espaçoso, bem limpo e não tinha pedra. As brincadeiras eram de cabra-cega, ciranda cirandinha e outros jogos de populares, que se brinca cantando. Na Boa Fé,

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ela gostava de carregar cabaça d’água na cabeça e de lavar os potes de leite com folha de marmeleiro.

Na parte da frente da casa da Boa Fé, havia dois pés de tamarindo. Outros dois davam sombra na parte de trás. Ao lado, três de juazeiro, tão antigos que dava para brincar de subir sem se espinhar. O lugar tinha um microclima agradável e uma dinâmica de vida bem própria. No final da tarde, a minha mãe ia com a irmã dela e o Miguel primo delas tanger as cabras para o chiqueiro. Naquela casa, tomava-se leite de cabra, de vaca e até de jumenta.

Com a Mãe Mena, moravam três tios da minha mãe. O tio Aurélio era tropeiro e ia pegar arroz com casca no Maranhão tangendo tropas de burros de carga; o tio Toinho era sapateiro, aprendera o ofício com o pai, Firmino, tinha máquina de costurar couro em casa e fazia sapato para vender e para dar de presente aos parentes; e o tio Saladino, o caçula, cuidava da roça, embora gostasse mesmo era de fazer gaiolas e de cuidar de passarinhos, conflito que o levou a ser considerado louco.

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De quando nada dava certo

A Mãe Mena ficara viúva com 37 anos. Era dois anos mais velha do que o marido, Firmino, que morreu com 35 anos, no dia do casamento de uma sobrinha dele. O cortejo dos noivos ainda estava em sua casa quando ele faleceu. Pensando que seria apenas um desmaio, a noiva chegou a colocar o seu perfume no nariz dele. Em vão; foi ataque fulminante do coração.

O pai da Mãe Mena se chamava Capitão Aurélio. Ele era civil, mas quem tinha dinheiro naquele tempo podia comprar normalmente patentes militares. Ele deu uma fazenda para cada uma das cinco filhas. Para a Senhorinha, deu os “Bezerros”, para a Zefinha, a “Santana”, para a Aninha, a “Estação”, para a Amelinha, o “Xique-xique” e para a Filomena, que era o nome de batismo da Mãe Mena, deu a Boa Fé, onde a minha mãe nasceu.

Para ficar perto da minha avó Odel, que todo mundo conhecia como Odélia (1911 – 1992), ela ofereceu um espaço da casa para o meu avô José de Paiva, vulgo Zé Sena (1911 – 2002), colocar um comércio de tecidos e grãos; mas durou pouco. O meu avô era um sujeito bonachão e gostava de boemia. Vivia falindo e abrindo negócios.

Ele conseguiu com o Sr. Dudu, que era um homem rico e seu amigo, uma casa na fazenda Altamira, toda de tijolos, com alpendre e sótão, para onde se mudou com a família e abriu uma

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nova loja de tecidos e um armazém, com piso cimentado. Vendia peças de pano cortadas ao gosto do freguês.

Na minha infância, ainda alcancei o meu avô negociando. Ajudava-o todo sábado em seu último comércio, que funcionava em uma pequena mercearia localizada entre a loja do Sr. Jari e a bodega do Sr. Malaquias, em um imóvel alugado do Sr. Joaquim Augusto, na praça do mercado. Ali eu fazia de tudo, desde servir dose de genebra, cachaça e Cinzano, até medir litros de grãos e empacotar artesanalmente em papel reciclado.

Eu adorava ficar observando o meu avô atendendo as pessoas. Sempre cordato, sempre sorridente e com uma impressionante paciência para entender o que o cliente queria de fato. Ele fazia o fornecimento de gente de toda parte e anotava em uma caderneta para receber depois. Quando chegava alguma mulher, das que ele certamente dava tratamento especial, ele me estimulava a ir dar uma circulada na feira, ver os cantadores, os tocadores de viola, o vendedor de óleo do puraquê, o peixe elétrico.

Pelos momentos extraordinários que passei com o meu avô Zé Sena, dá para entender um pouco o que a minha memória guarda do que ouvi sobre o seu comportamento quando a minha mãe era menina. Durante o dia, ele era comerciante e à noite gostava de jogar, de tocar violão e de dar uma escapadinha de casa para se encontrar com outras mulheres. A minha avó Odélia, mãe da minha mãe, era uma pessoa sensível e apaixonada, o que contribuía para deixá-la muito zangada com aquele comportamento.

Quando ele voltava para casa, ela brigava com ele e ficava mais chateada ainda quando ele pegava o violão e começava a cantar o samba “Brasa”, sucesso de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, na década de 1940: “Você parece uma brasa / toda vez que chego em casa / Dá-se logo uma explosão / Ciúmes de mim não acredito / pois meu bem não é no grito que se prende um coração”.

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Na Altamira, a minha mãe, a tia Nilda e outras crianças começaram a estudar com a professora Miriam Palhano, que se deslocava da cidade de Crateús para dar aula na sala da casa do meu avô. Nem sempre dava certo para ela ir, mas não deixava de ser um bom sinal de preocupação dele com a educação das filhas.

Mais uma vez, ele não conseguiu se estabilizar. Depois da Boa Fé e da Altamira, meu avô foi um pouco mais para longe. Montou uma nova loja no Monte Sinai, fazenda que pertencia ao Sr. Joaquim Ferreira. Manteve o bom costume de tocar violão sempre sentado em cadeira de balanço ou se balançando em uma rede… e o mau costume de maltratar a minha avó Odélia, assumindo abertamente o relacionamento com outras mulheres.

Falo dessas reminiscências que envolvem a vulnerabilidade da minha avó porque convivi com ela em toda a minha infância e sei das sequelas emocionais com que ficou. Mesmo assim, ela sempre foi vista por mim como uma flor do campo, uma doce e querida avó, com quem eu quis ficar morando, após passar uns dias sob a sua guarda e carinho, enquanto a minha mãe fazia uma viagem de férias com o meu irmão para Fortaleza. Ah, eu adorava vê-la conversando com o Lourival e a Rosa, o casal de papagaios que lhe faziam companhia em todos os momentos.

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Firmamento e Berimbau

Meu avô Zé Sena gostava muito da minha mãe Socorro e ela dele. Nas horas em que ele tocava violão, ela costumava ficar por perto para depois se deitar no colo dele até pegar no sono. Eles não tinham rádio em casa. Ela só tinha oportunidade de ouvir música quando ele cantava ou quando ia à missa.

No Monte Sinai, o pai da minha mãe movimentou a comunidade para a construção de uma igreja e de um grupo escolar. A professora Ester Ferreira passou a ensinar regularmente nessa escola e mais uma vez a minha mãe alimentou a esperança de que iria estudar pra valer.

Além da oportunidade de estudar, a novidade no Monte Sinai para a minha mãe era que lá havia açude. Enquanto na Boa Fé a meninada tomava banho em cacimba e, quando chovia, em riacho, no Monte Sinai, o açude tinha água o ano inteiro. À noite, brincavam de roda nos terreiros e de esconde-esconde dentro de casa.

Meu avô prosperou um pouco e se capitalizou com a venda da Boa Fé, após a morte da Mãe Mena. Resolveu, então, sair do Monte Sinai. Comprou duas propriedades, uma chamada Firmamento, para onde se mudou com a família e a loja, e outra, de nome Berimbau, onde colocou uma concubina, que é como são conhecidas as mulheres que vivem com homens sem serem casadas.

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A minha tia Nilda tinha ido estudar em Crateús e voltou para morar no Firmamento. Ela chorava todo dia por ter parado de estudar e por ter voltado para morar em fazenda. Foi tão insistente o seu choro que o meu avô conseguiu que ela fosse estudar em Fortaleza na casa do irmão dele, o tio Paiva.

A ida da tia Nilda para Fortaleza acabou com uma das brincadeiras favoritas da minha mãe, que era acompanhar a irmã nas brincadeiras de casamento de boneca com boneco que ela costumava fazer. Tinha aprendido a costurar com a Mãe Mena, que fazia paletós e calças para casamentos em uma máquina de costura manual.

Dos lugares onde a minha mãe morou, o Firmamento foi o que ela jamais gostou de recordar. Ele sempre foi uma menina sorridente e muitas vezes engoliu o sorriso com o que acontecia na casa de taipa daquela fazenda maldita. Ali ela sofria com a distância da irmã, por ter deixado de estudar e com as consequências das farras sucessivas do meu avô.

Foi no Firmamento onde a minha mãe e a tia Nilda brigaram uma só vez. É que em uma casa próxima morava um rapaz chamado Esaú. A minha mãe inventou que ele gostava de frequentar a casa delas porque queria namorar a tia Nilda, que tinha uns 15 anos nessa época. Para descontar, no dia em que o Esaú apareceu por lá, a tia Nilda chamou a minha mãe e disse:

– Socorro, o teu namorado está te esperando lá fora!

Ao perceber que se tratava do Esaú, ela se zangou e rasgou o vestido da irmã, que reagiu dando umas tapas nela. A Isabel Teixeira, que morava na casa dos meus avós, ouviu a confusão e, mesmo doente da coluna, conseguiu apartar a briga, porque ambas gostavam muito dela e respeitaram o seu pedido de trégua.

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Nem escola nem casa

Na mesma época em que a minha mãe, ainda menina, ficava desiludida na fazenda Firmamento, o meu pai amargava o segundo grande baque de sua vida.

Ele havia chegado ao São João ainda criança, como o vaqueiro dos bodes. Trabalhou duro com o pai e alguns irmãos para construir a fazenda de referência que ela se tornou.

Meu avô, Manoel Rodrigues, que tinha saído da condição de morador de casa de taipa na Várzea da Cacimba, começava a ser visto como um respeitado fazendeiro no sertão dos Inhamuns.

Na fazenda Floresta, do Sr. Pires, que ficava a poucas léguas do São João, havia um esquema de aulas na casa principal e o meu pai estudou por lá. Depois foi para Fortaleza e passou três anos no Colégio Cearense, mas foi chamado de volta para trabalhar em um ano de seca intensa. E ele ficou só com esse estudo mesmo.

Em um dos movimentos de expansão de negócios do meu avô, ele retirou um gado para a serra da Pedra Branca e enviou meu pai para lá, com a finalidade de cuidar das vacas, tirar o leite, fazer queijo com a ajuda de uma mulher chamada Maria de Barros, e levar para vender na cidade. Deu certo, foi criada uma freguesia boa e toda a produção era vendida.

Muitas amizades foram feitas por ele nessa atividade. Até que um dia ele acertou com uns amigos para irem pastorar as va-

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cas enquanto ele saía para namorar. Não custava nada e ele caiu no costume. Acontece que o trabalho dos amigos era um tanto relaxado, e os bezerros começaram a mamar além da conta e a produção do leite caiu.

Para compensar, ele começou a tirar uma parte do leite à tardinha. Foi repreendido pelo cunhado Elício Abreu, marido da tia Adélia, que era o responsável por outros negócios do meu avô, e, inclusive, quem mandava o dinheiro apurado para o São João.

O argumento do meu pai era o de que os animais estavam sendo bem tratados e que a renda se mantinha a mesma. Não teve jeito, deu briga e o meu pai bateu no cunhado em uma confusão que só parou quando uns jogadores de baralho suspenderam a partida para apartar os brigões.

O pai da moça que meu pai estava namorando era amigo do meu avô e se dava bem com os dois envolvidos na briga. Tinha, portanto, isenção para contar o ocorrido. Ofereceu-se para ir ao São João acompanhando o meu pai e sua proposta foi aceita.

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Com a roupa do corpo

Passaram o dia cavalgando e quando foi no final da tarde chegaram à fazenda do meu avô. O homem que acompanhava o meu pai relatou o fato.

– Manoel Rodrigo, eu vim pra contar uma história que aconteceu com o seu filho e eu estou aqui para dizer que vi e não vou mentir nem para um lado, nem para o outro. Vou contar do jeito que aconteceu.

E contou mesmo, sem tirar nem pôr. Meu avô ficou calado, que não conseguia nem pensar. Não disse sequer obrigado. O homem retirou-se e, no que dobrou a quina da cerca, o meu avô pegou o chicote e partiu para cima do meu pai para dar uma surra nele. Meu pai pulou a mureta do alpendre e ele pulou atrás.

– Peraí, cabra, que vou lhe dar uma surra para você nunca mais fazer o que fez.

– Papai, eu nunca lhe desobedeci. Tudo o que o senhor me mandou fazer até hoje eu fiz, mas pare aí, vamos conversar de longe.

– Pois pare você também.

Ambos ficaram parados. Meu pai segurou o olhar na linha do olhar do pai dele e disse:

– Eu já sou um homem meu pai, nós podemos resolver esse assunto de outro jeito.

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Aí o meu avô baixou a mão com o chicote e falou.

– Pois se você não aceita a surra, tá despachado da minha casa. Vá simbora que eu não quero mais lhe ver.

E o meu pai foi expulso de casa a pé, com a roupa do corpo e sem saber para onde ir. Não foi fácil deixar um lugar que ele havia ajudado a construir a custo de tanto suor.

Não havia de olhar para trás. Lembrou-se do Sr. Zé João, que era casado com uma tia dele e com quem tinha uma relação de amizade.

Caminhou para lá e contou toda a história, antes de pedir para ficar morando lá por alguns dias, enquanto encontrava um meio de vida.

– Tio Zé João, não se preocupe que não vou ficar comendo às suas custas. Só preciso de um abrigo para recomeçar. Não tenho um tostão, nem tenho nada, mas tenho coragem de trabalhar.

– Não, Toinzinho, pode ficar aqui o tempo que você necessitar.

Acolhido, meu pai procurou um outro amigo que pudesse emprestar um burro com uma sela para ele. Sem entender bem o que estava se passando, o amigo resolveu pregar uma peça no meu pai e, ao selar o burro, deixou de propósito uma ponta dos arreios solta. No instante em que o meu pai montou, ele, de prosa, deu uma cutucada no sovaco do burro e o animal de solavanco derrubou o meu pai, que se arrebentou todo em cima de uma cerca.

Com o rosto todo quebrado e perdendo muito sangue, ele foi levado para o alpendre da casa. A hemorragia estancou, mas o rosto estava tão ferido que ele não podia comer. A filha do dono da casa, em sinal de compaixão, passou a cuidar dele, dando leite em um pequeno funil pelo canto da boca. Demorou a ficar bom.

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A parte do sócio

O Sr. João Campelo, que tinha muito recurso e morava perto do Sr. Zé João, soube da história e chamou o meu pai para oferecer uma sociedade na compra e venda de um gado.

– Toinzinho, tem um baiano lá na fazenda Espírito Santo com cinquenta novilhas zebu para vender. É coisa muito boa e rara por aqui. Se você se agradar, eu posso comprar todas para você vender com o lucro repartido para nós dois.

Foram olhar as novilhas e, quando estavam fechando o negócio, o dono do gado descobriu que o meu pai era filho do Manoel Rodrigues do São João e disse:

– Eu conheço o seu pai. É homem direito. Se você tivesse me dito eu vendia o gado para você me pagar depois.

– Obrigado, mas eu não ia aceitar. E se eu não tivesse sucesso na venda, como pagaria os prejuízos? O gado está magro, andou muito da Bahia para cá.

Decidiram que as novilhas seriam vendidas a um conto e quinhentos e que o meu pai pegaria a estrada da Boa Viagem e de Canindé para tentar vendê-las. Ele partiu de manhã. Quando escureceu, pediu rancho na casa de um velho amigo, o Juca Pedro, e lá viu um burro muito formoso. Fez uma provocação.

– Me venda aquele burro, com uma sela bem boa e nova, que eu vou vender esse gado e quando voltar eu lhe pago. Se não vender, devolvo o burro e a sela.

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Negócio feito e ele saiu para vender gado zebu, que era um gado raro, cavalgando um burro que lhe dava a imagem de um respeitável vendedor de gado.

Na feira da Boa Viagem, aconteceu um incidente. Houve qualquer movimento que assustou os animais, as novilhas correram por dentro da cidade e uma delas cortou a pata em um caco de vidro. Mas o que parecia um mau começo reverteu-se logo em seguida com a venda de dez animais por três contos de réis cada um. E assim saiu de feira em feira.

A viagem como um todo foi um sucesso. Vendeu tudo e ainda trouxe um touro e uns burros que recebeu nas negociações. Todas as transações foram anotadas por ele em uma caderneta e o dinheiro era tanto que dificultava carregar na manta de couro que fica por baixo da sela do burro. Na hora de dormir, ele tirava a carona, colocava no fundo da rede e dormia sobre ela para não ser assaltado.

João Campelo estava na porta de casa com a sua mulher, Donzinha, na hora em que o meu pai retornou. Quando ele viu meu pai com alguns animais, foi logo dizendo:

– Valei-me, Donzinha, o Toinzinho voltou arrasado. Isso não é coisa que se faça. Jogamos o dinheiro fora.

Calado, o meu pai encaminhou os animais para o curral e dirigiu-se ao Sr. João Campelo, mostrando a carona nas costas, cheia de dinheiro. Ele pulou como uma menino e gritou novamente para a mulher.

– Cheeega, Donzinha, pelo amor de Deus, o Toinzinho tá que não sabe onde colocar o dinheiro!

Subiram ao sótão da casa e cada um pegou as cédulas que estavam de cada lado da carona e começaram a contar. O dinheiro foi dividido ao meio, metade para cada um, embora o acerto dos dois tivesse sido para uma venda a um conto e quinhentos e o meu pai tivesse vendido a três contos.

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Todas as vezes que o meu pai me contou essa história ele fez questão de salientar que o que vale em um negócio é o conceito do acertado. Neste caso, o acordo de fundo era que o lucro seria dividido igualmente para os dois. Se ele conseguiu vender pelo dobro do esperado e, consequentemente, o apurado foi além da expectativa, melhor. Mas melhor para os dois.

Afora a prova de que já estava preparado para ganhar a própria vida e a felicidade de ter tomado a atitude correta, honrando a confiança do Sr. João Campelo, ele deduziu que o êxito naquela venda tinha um algo mais:

– O meu pai me botou para fora de casa, mas não me amaldiçoou.

Com o dinheiro que ganhou nessa empreitada, meu pai comprou uma burra estradeira e, em homenagem à origem das novilhas que vendeu, colocou o nome dela de Baianinha. E foi viver por muito tempo comprando e vendendo gado com o próprio dinheiro.

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Para ver o avião

Era mês de festa na cidade de Independência. Mês de julho de 1952, muita quermesse, leilões, batizados, casamentos e novenas em louvor a padroeira, Nossa Senhora Sant’Anna. O converseiro nas ruas vira e volta engatava na autorização para a construção do trecho da estrada de ferro que ligaria o Município a Crateús. A expectativa criada era a de que depois seria feita a outra parte, ligando Independência a Piquet Carneiro e isso, que nunca aconteceu, contribuísse para o desenvolvimento da Cidade.

Por conta dessa portaria do Governo federal, chegou no campo de pouso da cidade um avião. A pista tinha sido improvisada em uma várzea, ladeando a estrada que seria a BR-226, na saída de Independência para Crateús. Todo mundo foi para lá ver a novidade. Era um monomotor com três janelas, o bico aparado e, quando aterrissado, com asas da altura das pessoas. O piloto saiu sobre a asa esquerda e as pessoas se aproximaram.

As autoridades estavam vestidas de linho branco acetinado e com chapéu de massa, algumas mulheres bem arrumadas, com vestidos em tons escuros, os meninos de calças curtas e as meninas com vestidos claros, de mangas bordadas. A menina que seria a minha mãe, Socorro, estava com uma roupa assim. Roupa nova, comprada especialmente para a festa de Senhora Sant’Anna.

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Do lado oposto ao que estava sendo feito o desembarque, ela afastou-se do meu avô e da minha tia Nilda para encostar-se a uma das rodas do avião e observar as letras escritas na parte inferior da asa.

– PP…

– Você é a filha do Zé Sena?

– Sim, por quê?

– Porque vou esperar mais alguns anos para me casar com você.

Ela, que era uma bela e sorridente garota de apenas 15 anos, saiu correndo e sumiu na multidão.

O bonito rapaz era o meu pai, então com 31 anos. Ele estava com umas calças escuras, uma camisa branca e um chapéu preto. Circulava de motocicleta e muitas moças sonhavam sem sucesso em casar com ele.

Um dia meu pai me contou o que sentiu quando viu a minha mãe naquele momento:

– Ela não era moça ainda. Era uma meninoca. Mas eu achei ela bonita de um jeito que fiquei com vontade de propor logo casamento. Naquele dia não deu, pois ela ficou muito encabulada. Mesmo assim, na volta do campo de pouso para a rua, eu passei perto do cavalo que ela montava e pedi baixinho para ela esperar por mim.

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O bule de ágata

A provocação do meu pai deu certo e minha mãe decidiu-se por ele. A prova foi naquele mesmo dia quando apareceu na praça de Independência um rapaz que tinha visto a minha mãe em Crateús, quando ela fora com a titia Nilda e meu avô Zé Sena comprar roupa para a festa, e estava ali para cortejá-la. Ela não deu a mínima para ele. Não foi nem para o baile dançante para evitar qualquer assédio. A cidade não tinha clube e o salão de festas, com piso de madeira encerada, ficava localizado na parte de cima do prédio onde funcionava a cadeia.

Naquele tempo essas idas e vindas de aproximadamente quarenta e cinquenta quilômetros eram normalmente feitas a cavalo. Era assim que a minha mãe e toda a sua família se deslocavam. Já meu pai sempre gostou de motocicleta. E era sobre duas rodas que vez por outra ele passava na casa dos meus avós no Monte Sinai, namoricando a minha mãe e, nessas idas e vindas, conquistou também a simpatia da minha adorável avó Odélia.

– Toinzinho, você já tá bom de casar. É um rapaz direito, gosta da minha filha Socorro e ela também gosta de você…

Ele não deixou nem ela terminar e pediu a mão da minha mãe em noivado. O meu avô Zé Sena ficou tão feliz que fez uma festa dançante no Monte Sinai para comemorar. No dia do evento, os convidados chegaram antes do meu pai. Os rapazes ficavam doidos para dançar com a minha mãe. A pressão era grande,

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até que ele apareceu com o corpo todo ralado de uma queda da motocicleta.

Não conseguiu dançar nem nada. Recebeu os cuidados da minha avó e da minha tia Nilda e, evidentemente, o carinho da minha mãe. Ela tinha completado 17 anos e com esta idade casou.

O casamento foi celebrado pelo Padre Jacques Moura, no dia 11 de novembro de 1954. Meu pai tinha encerrado dois namoros anteriores sem muita explicação e ficou com receio de haver confusão na igreja, de sorte que a cerimônia ocorreu à noite e só os familiares que estavam em Independência foram convidados.

A minha mãe conta que ainda não tinha quase nada em casa. Nem cadeira para as visitas. Ela guardou de lembrança desse momento, um bule de ágata verde, com três flores pintadas em branco e vermelho. Para ela, cada flor representa um dos seus três filhos que nasceram e se criaram naquela casa da praça do mercado.

A notícia do casamento correu, mesmo assim, pela pequena cidade. Os boatos questionavam se era possível o meu pai casar com uma moça pobre, quando ele tinha pretendentes filhas de ricos. Mal o dia amanheceu e, por incrível que pareça, a primeira pessoa que bateu à porta para saber se aquilo tudo era verdade foi a dona da farmácia, que era uma mulher séria e matriarca da respeitada família Pires de Sabóia.

– Quando abrimos a porta, era a dona Maria Adélia que queria ter certeza de que eu e a Socorro estávamos dormindo juntos na mesma casa.

– Você casou mesmo, Toinzinho?

A pergunta foi feita só por fazer, pois ela acabara de testemunhar o casal em seu primeiro amanhecer sozinho na mesma casa.

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Cenas de uma cultura solar

O pai do meu pai acabara de selar o cavalo para ir à fazenda São João, quando soube que havia um bando de capangas do Sr. Jeson em tocaia para matá-lo. A fazenda Betânia, do Sr. Jeson, era vizinha a dele e por muitas vezes as desavenças entre os dois resultaram em conflitos violentos.

Meu avô ficou uma fera e acabou agredindo algumas pessoas que tentavam impedi-lo de ir para a briga. Puxou o revólver 38 da cintura e entrou no bar do Gulin da dona Maria para tomar um gole de cachaça. Lá encontrou o Chaga Ferreira, que também era um cabra valente e já tinha tomado umas doses com os amigos, e o encontro transformou-se rapidamente em uma briga.

O comentário da contenda chegou ao meu pai e ele correu para ajudar a apartar a briga. Tomou logo o revólver da mão do meu avô e, juntamente com o meu tio Otávio, puxaram ele para fora do bar, enquanto o Sr. Gulin fechava a porta com o Sr. Chaga Ferreira e os outros do lado de dentro.

Havia passado mais de uma década que meu pai tinha sido expulso de casa. Mais de dez anos de uma intriga silenciosa. As primeiras palavras de reconciliação dos dois foram ditas pelo meu pai, enquanto tirava as balas do revólver e devolvia a arma ao meu avô.

– Eu sou seu filho e estou do seu lado.

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Meu avô deu as costas para ele e saiu sem dizer nada.

Quando os ânimos se acalmaram, o Sr. Vieira Brígido procurou o meu avô para dizer que ele precisava acabar com aquela intriga com o meu pai.

– Manoel Rodrigues, você deve ser amigo do Toinzinho, que ele lhe salvou de uma encrenca maior naquele dia. Ele aceitou o conselho e pediu que meu pai fosse chamado para uma conversa no São João.

– Você está perdoado por não ter aceitado a surra que eu quis lhe dar.

A retomada da relação entre meu pai e meu avô foi muito boa para mim na infância. Era comum o meu avô passar lá em casa e me pegar para ir no carro com ele abrindo as porteiras nas veredas por onde ele transitava. Eu me divertia muito com essa tarefa e ficava todo manhoso quando ele pegava na minha barriga, esticava o couro e dava um lepo, um estalo carinhoso.

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O preço da atenção paterna

Nas minhas idas ao São João, eu adorava comer beira de queijo, cortada pela Comadre Chica e pela Maria Pedro, duas negras descendentes de escravo, que moraram na fazenda até morrer. A Comadre Chica era meio abusada, mas a Maria Pedro tinha feições de bebê. Estar em seu colo, receber sua atenção, transmitia algo inexplicavelmente mágico.

Minha avó Francisca Cavalcante, carinhosamente chamada de dona Fransquinha (1898 – 1995), transbordava um carisma admirável. Teve mais de uma dezena de filhos com o meu avô e soube amar a todos. Seu comportamento compreensivo estabeleceu em muitas circunstâncias o equilíbrio diante das intransigências do meu avô.

O bolo de macaxeira da minha avó ainda hoje dá sabor à minha memória. Ainda que eu tenha convivido pouco com ela, porque ela morava em Fortaleza, foram momentos de intensa satisfação. Quando ela sofreu uma hemorragia cerebral e perdeu os movimentos de um lado do corpo, ficando inclusive sem falar, coincidiu com minhas férias e eu gostava quando ela se divertia comigo, na sua tentativa de retomar a palavra pela leitura. Na cartilha em que ela fazia seus exercícios tinha um garoto negro, que ela associava a mim. Quando começou a balbuciar os primeiros sons, não conseguia me chamar de pretinho, então dizia apenas “Tião”, que era o nome da personagem. E ria um riso de avó que guardo nas minhas boas lembranças.

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A convivência com os meus avós paternos foi muito boa, embora em minha cabeça de menino eu achasse que os meus pais pagavam um preço muito alto para manter a atenção que o meu pai tinha necessidade de ter do meu avô. Vivi esse conflito em minha infância.

Eu ficava indignado toda vez que havia briga por questão de terra e o meu avô levava seus homens para almoçar lá em casa. Eu ficava incomodado com a minha mãe fazendo comida para tanta gente, quando não aprovávamos aquela violência. Mas ela, porém, fazia tudo satisfeita por saber que seu trabalho contribuía para manter a relação do meu pai com o meu avô.

Lembro-me vagamente das confusões que ainda reincidiam na Várzea da Cacimba, das quizilas do Manoel Rodrigues do São João contra o Sr. Nascimento Carneiro. Era um que queimava a cerca do outro e depois o outro que desmanchava a cerca do inimigo e jogava rio abaixo. Quando essas hostilidades aconteciam à noite a nossa casa era invadida por pessoas desconhecidas e eu não sabia o que fazer.

Graças a Deus, não nos deixamos contaminar por qualquer dessas intrigas e sempre fomos amigos das filhas e dos filhos dos finados Nascimento, Chaga Ferreira e Jeson, da mesma maneira que a briga do meu pai com o finado Elício nunca alterou o afeto que tivemos por nossa tia Adélia e por todos os seus filhos, que são primos muito queridos.

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De um amável botão de flor

Um ano depois de casados, os meus pais tiveram o primeiro filho, Paulo. Três anos depois, foi a minha vez; e onze anos depois nasceu a minha irmã Cynara. Entre mim e a caçula, tivemos uma irmã natimorta.

No início da década de 1960 passamos um tempo morando no Poço Comprido, uma terra na localidade de Belém, a uns trinta quilômetros de Independência, pelo sentido do nascente. Meu pai resolvera parar de ser vendedor de gado para ser criador. Simultaneamente, ele montou um bar no mercado público, para o meu avô Zé Sena tomar de conta.

Para mim foi uma experiência maravilhosa de brincar com as borboletas, com as abelhas no cacimbão e de ter muito tempo para ouvir rádio me balançando na rede do alpendre com impulso dado com o pé na parede da nossa aconchegante casa de taipa. O lado ruim foi que eu só convivia com o meu irmão nos finais de semana, já que ele ficara estudando em Independência.

Nas estações chuvosas, o trajeto do Poço Comprido para Independência, na garupa da motocicleta do meu pai, tinha dois trechos inusitados: uma passagem de massapé, que eu adorava atravessar a pé, pisando na lama lisa e escorregadia; e a ladeira do Belém, que me dava medo e na minha cabeça ecoava a canção “Leva eu sodade”, de Tito Neto e Alventino Cavalcante, na

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voz grave de Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano: “Ô leva eu, minha sodade / eu também quero ir / minha sodade / quando chego na ladeira tenho medo de cair”.

Depois voltamos a morar em Independência. Ali passei a minha infância e adolescência. Tínhamos uma comunidade a nos educar. Anos incríveis, como se diz. Ajudávamos nossos pais, participando das tarefas da vida familiar, contávamos com professoras que sentiam prazer em nos educar e tínhamos a rua e a mata como espaços de invenção do cotidiano pela brincadeira. Infelizmente só não tínhamos como continuar estudando ao terminar o ensino fundamental. Desse modo, fomos migrando um por um para Fortaleza: primeiro o meu irmão, fui o segundo e por último a minha irmã.

Voamos, mas o nosso ninho está lá como ninho de casaca-de-couro, casa de João-de-barro… ninhos que não servem só para uma ninhada. Meus pais venderam o terreno do Poço Cumprido e compraram uma chácara perto da cidade e colocaram o nome de Manchete. Passaram a morar lá. Fazem parte da paisagem, dos campos floridos, do botão de flor que regaram em nossos corações.

Conto a história do meu pai Toinzinho e da minha mãe Socorro para os meus filhos como quem fala de uma intensa e fervorosa flor, um casal que fez das condições sociais e ambientais que encontrou no mundo as possibilidades de encantar a vida. Eles transmitiram o melhor deles para nós e ainda nos deixaram ser o que escolhêssemos ser.