Entrevista com Flávio Paiva

“(…) na cultura, como na natureza, a decomposição sistêmica é sinal de que algo novo está se preparando para nascer. É assim com as sementes quando estão prontas para brotar, e tem sido assim com as sociedades humanas nas circunstâncias de saltos civilizatórios.”

É com esse trecho retirado de um artigo publicado em um jornal de grande circulação no estado do Ceará que começamos a conversa com Flavio Paiva – Jornalista, ativista cultural e autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, gestão compartilhada, mobilização social, memória e infância, entre outras tantas atividades no campo da cultura.

1. Qual o significado da cultura para as populações, seja em momentos de calmaria ou em tempos de “saltos civilizatórios”? Todo tempo é tempo de “brotar” quando falamos de sociedades?

Flávio Paiva – É na cultura que habita o nosso sentido de destino. Os rumos tomados pela sociedade dependem principalmente das portas e das janelas que se abrem ou que se fecham para a potência humana de alterar a si próprio e o ambiente onde vive. Mesmo nos povos mais conservadores, a cultura está em permanente mutação. Quando esse processo de remodelagem contínua fica desproporcional à nossa capacidade de medir as consequências do que fazemos, o sistema colapsa, criando condições para o estabelecimento de uma nova ordem.

Embora sendo essencialmente culturais, não somos, instintivamente, tão diferentes dos outros mamíferos, dos peixes e das aves. Todos dependemos de alguma lateralidade quando nos sentimos ameaçados. Manadas, cardumes e bandos se movimentam em sincronia como meio de proteção diante da proximidade do que for identificado como predador. No caso das sociedades humanas, as multidões também se valem da linha lateral como tática de defesa, mas isso acaba levando os indivíduos a baterem-se uns contra os outros, quando não há um consistente trabalho de formação de consciência cultural. A conduta da lateralidade grupal pode ter importância na aceleração de transformações sociais; contudo, para mudar de fato, uma sociedade necessita da catálise do uno e do diverso, a qual se dá no âmbito da cultura.

2. Em alguns dos seus artigos e entrevistas, você trata o tema do individualismo como um fator que impacta diretamente na construção pública dos direitos. Quanto dessa reflexão tem a ver com participação social no contexto atual?

Flávio Paiva – O individualismo como fenômeno social tende a predominar nas sociedades inseguras, hedonistas e culturalmente fragilizadas. Nessas situações, fica difícil alguém distinguir o que o atrai genuína ou artificialmente e, por conseguinte, de escapar dos domínios do patriarcado, da plutocracia, da cleptocracia, das ofertas de ilusões, da doutrina do consumismo, do extrativismo inconsequente, do antropocentrismo e da ideologia do futuro que nunca chega para a grande maioria que vive presa a desejos induzidos e a vontades inalcançáveis.

Como tem pouco ou nenhum interesse em perceber sentido no todo, o individualista contenta-se com o show de horrores da manipulação de informações falsas, com o teatro obscuro do negacionismo, com o ilusionismo das teorias conspiratórias, com a corda bamba das manifestações antidemocráticas, com a derrubada das instituições republicanas como se estas fossem peças de dominó, com os passos escatológicos da dança moral religiosa da prosperidade, enfim, está sempre à vontade para sacrificar tudo o que é comum, público e que se encontra na esfera da gratuidade. O crescimento desse tipo de mentalidade que só quer se dar bem, mesmo às custas da devastação ambiental e do esgotamento das relações humanas, dificulta a travessia para novos estilos de vida que possam ser menos econômicos e mais voltados para o amplo usufruto das belezas e das riquezas do mundo.

3. Em relação à questão da interatividade nas redes sociais, pode-se falar em uma cultura comunicacional consolidada com formas e padrões definidos?

Flávio Paiva – As mudanças de paradigmas no compartilhamento cotidiano de mensagens e informações trazidas pelas redes sociais deram início a um tempo digital contraditório, por ser simultaneamente marcado por um grande poder de interação e pelo controle de algoritmos na formação do senso comum. Não poderia ser diferente, considerando que na atualidade, em linhas gerais, os povos e os governos pensam e agem de acordo com os interesses das corporações econômicas.

O surgimento de aplicações sociais mais abertas, menos centralizadas e mais livres de tudo o que decorre dos avanços tecnológicos digitais, a exemplo dos smartphones, da internet das coisas, da bancarização eletrônica, do armazenamento de informações em ‘nuvem’, da lógica algoritmica do melhor proveito e dos cruzamos de informações personalizadas, somente acontecerá se prevalecerem as tendências que valorizam o decrescimento e a redução das desigualdades. Caso contrário, cada vez mais predominará sobre os indivíduos o arbítrio das estatísticas e dos códigos de barras.

A crise de significados vigente deixou o mundo transitório, e não apenas os seus ocupantes. A observação da vida real feita preponderantemente por meio de uma tela tem tanto a ver com isso quanto a emergência climática e a regressão da infância ao estágio de adulto miniaturizado dos tempos medievais. As incríveis conquistas do ciberespaço e da realidade aumentada são feitos inquestionáveis do gênio humano que ainda levarão muito tempo para ultrapassar a euforia das descobertas e adaptar suas formas e padrões comunicacionais à integração da cultura em si e com a natureza.

4. As fake news, presentes na comunicação on-line e nas redes sociais, podem afetar o processo de participação e de controle social das políticas públicas pela população?

Flávio Paiva – As fake news são como balas de signos discursivos que explodem dentro dos corpos alvejados, destruindo a capacidade crítica do sujeito. Esse tipo de boato viral eletrônico perturba o fluxo da compreensão e da tomada de atitude de cidadãs, cidadãos, gestoras, gestores e lideranças políticas, alcançando, muitas vezes, mesmo aquelas comprometidas com a resposta que o Estado tem a obrigação de oferecer às pessoas no que diz respeito à equidade, às correções de injustiças históricas e ao direito à dignidade. O mundo virtual tenta cada vez mais replicar a realidade e, ao fazer isso, não há como filtrar os seus subterrâneos. De sorte que os disparos de mentiras em rede continuarão explosivos até que se descubra a importância do reconhecimento do ponto de vista do outro.

O mundo é essencialmente feito de seguidores. A maioria das pessoas não se move na direção de assumirem papéis-modelos, nem isso seria possível. Por outro lado, a variação numérica favorável a quem dá atenção especial aos efeitos socialmente destrutivos das fake news cresce muito devagar, pois depende proporcionalmente das oportunidades educativas existentes, criadas e conquistadas pelas mobilizações sociais. Neste aspecto, é desarrazoado levar em conta os influenciadores de internet, haja vista que eles se notabilizam por espalhar mensagens de efeito que impactam o senso comum, mas não funcionam como mediadores simbólicos. Não podemos esquecer que a proliferação de notícias falsas digitais decorre em muito de uma ânsia de ativismo on-line, associada à ideia de monetização da vida e ao desempenho competitivo na definição das paisagens sociais contemporâneas.

5. Você utiliza o conceito de Cidadania Orgânica para falar sobre o comportamento de indivíduos e de grupos na sociedade. Pode explicar melhor esse conceito e dizer como ele se relaciona com a ideia de participação social?

Flávio Paiva –Desde 2009, quando propus publicamente esse conceito, venho me esforçando para interpretar um tipo de comportamento social que vincula o bem-estar individual ao equilíbrio da vida em sociedade e nas relações humanas com o meio ambiente. Diferentemente do Intelectual Orgânico, desenvolvido um século atrás pelo pensador italiano Antonio Gramsci como alguém que pensa pela classe, categoria ou segmento social a que pertence, o Cidadão Orgânico se interessa pelo todo e, a partir desse interesse, age onde vive e atua. É importante ressaltar que esse conceito não pressupõe qualquer substituição ao conceito gramsciniano, bastando para isso atentar às particularidades dos seus escopos.

O processo de fortalecimento da Cidadania Orgânica influencia uma inversão fundamental nas aspirações das pessoas, colocando a cultura como ponto de partida para a participação social emancipadora e integrativa. Em apreciação panorâmica percebo a preeminência da cultura antecedendo as ações educativas. Isso porque uma sociedade culturalmente forte é capaz de ter uma educação, uma política e uma economia alinhadas aos seus anseios coletivos, com respeito às individualidades. A cidadania é um bem cultural. Quanto mais uma sociedade conta com cidadãs e cidadãos atentos à associação do conjunto de interesses comuns aos seus interesses particulares, mais eficiente será o controle social nas definições, acompanhamentos e aplicações dos recursos das políticas públicas.

6. Existe um caminho já traçado ou uma fórmula para a construção de vínculos sociais e para o fortalecimento de uma cultura de participação?

Flávio Paiva – Em todas as culturas de todo o mundo há experiências que podem ser multiplicadas nesse sentido, e precisamos buscar nos diversos continentes referências nas sociedades que se reinventaram. Temos dificuldade para fazer isso porque nos conformamos com as tipificações geopolíticas e com os indicadores macroeconômicos difundidos pelos poucos países controladores da ordem e promotores da desordem mundial, o que nos leva a estarmos eternamente correndo atrás de alguma posição, sem muitas vezes perguntarmos por quê.

O estilo de vida consumista, dominante em parte significativa do globo, passou dos limites e levou o planeta à exaustão. Existem outras visões de mundo e outros modos de organização social e de práticas políticas que precisam ser mais difundidos. O exercício da pluriversalidade é fundamental na construção de uma geopolítica multipolar, que não separe Oriente e Ocidente, nem aceite mais os ares de superioridade do Norte com relação ao Sul, tornando comum a valorização das diversas perspectivas de ser e de estar no mundo.

Sociedades como as escandinavas, que há pouco mais de um século eram pobres, se tornaram referências mundiais em termos de Estado de bem-estar social pela priorização do bem-comum. Eles partiram do fim do mundo, com a consumação dos deuses (Ragnarök) que os impediam de refletir por si mesmos, para criar sociedades com base em princípios menos mitológicos e mais humanos.

Os esforços latino-americanos do bem-viver, desenvolvidos a partir da cosmologia de povos que ficaram à margem do crescimento econômico, do produtivismo, da acumulação e da eugenia consumista e que mantiveram a matriz comunitária e a relação integral e integrada da cultura com a natureza, têm gerado insumos preciosos para a reflexão e a participação social planetária.

Do mesmo modo, faz-se necessário assimilar amplamente mais parâmetros existenciais de preservação da vida no norteamento das aspirações no mundo como os aflorados nas montanhas asiáticas butanesas, que primam pela valorização da cultura, do bem-estar psicossocial, da utilização balanceada do tempo, da espiritualidade e dos cuidados ambientais.

7. Um dos seus livros foi escrito a partir da ideia de que, atualmente, temos muitas respostas, mas não exercitamos tanto a arte de perguntar. Quais os aspectos que levaram você a esse entendimento? Ter “muitas respostas e poucas perguntas” pode interferir na participação das pessoas na vida política e social da comunidade, do município ou do país?

Flávio Paiva – Uma das distorções da comunicação na atualidade é a priorização das respostas, sem que se saiba exatamente se há algo perguntado. Antes da implementação da rede mundial de computadores, havia uma compressão massiva e unidirecional sobre o direito de ter dúvida, provocada pela separação entre os que sabem e os que não sabem. Foi sempre muito impiedosa a desconsideração dos bem-informados com relação aos saberes dos ‘bem-enformados’, ou seja, as pessoas que não se encaixavam nos moldes estabelecidos pelas autoridades intelectuais e educacionais. Com o advento das redes sociais digitais, a percepção da ignorância deixou de ser exercitada como estímulo à busca de conhecimento e de sabedoria para se tornar um estado de linguagem em situação de catarse.

A maioria numérica assumiu os espaços de opinião, e essa ansiedade generalizada ainda não encontrou o seu ponto de equilíbrio, até porque muitos dos intelectuais tradicionais ficaram atônitos diante desse fenômeno de depuração pelo qual a humanidade precisava passar, como pré-requisito para atravessar as turbulências da hipermodernidade, nos termos definidos pelo filósofo francês Gilles Lipovestsky, e, assim, criar as condições para chegar ao que chamo de Era das Substancialidades, na qual a ostentação, a mercantilização dos bens e serviços essenciais à vida, o desperdício e os esforços hegemônicos possam virar tabus.

8. Tempos atrás, você afirmou que “a sociedade civil tem a capacidade de lidar com as tensões políticas fazendo emergir os melhores traços de quem pensa diferente.” Essa foi uma provocação para a participação da sociedade e para a abertura dos Governos à participação?

Flávio Paiva – O grande problema do Brasil é que, passados mais de cinco séculos do início do processo colonial, ainda não conseguimos formar uma elite governante porque a cultura da maioria das lideranças do país ainda está atrelada ao modelo mental de colonizado. Salvo exceções, os políticos brasileiros têm pavor da sociedade civil e procuram anular tudo o que não está à sombra do Estado ou dos partidos. Daí as permanentes tentativas de cooptação dos movimentos sociais e de neutralização das correntes independentes. Em decorrência dessa inversão de papéis, em vez de termos uma sociedade que possa dizer o que espera dos parlamentos e dos executivos públicos, temos uma população vacilante que os políticos controladores do Estado procuram sempre modelar para servi-los, ora inventando um povo que quer lutar por justiça social, ora fomentando outro que quer apenas se dar bem.

É surreal essa troca de posições, mesmo em uma democracia aprendiz como a brasileira. Esse fenômeno só é possível por conta de uma combinação entre a falta de acesso à informação qualificada e os imediatismos resultantes da miséria estrutural. Entretanto, considerando essa condição, se observarmos criteriosamente as escolhas feitas pelas eleitoras e pelos eleitores brasileiros, pode-se ver que, paradoxalmente, são escolhas invariavelmente muito bem tomadas. Isso quer dizer que temos um povo preparado para votar, mas não temos tido ofertas de candidatas e de candidatos à altura da sensibilidade dessas pessoas. A valer, o que parece inconformidade é uma insuficiência decorrente da falta de exercício pleno da cidadania, o que causa frustrações eleitorais e permite a apropriação indébita do patrimônio público material e simbólico por parte de quem se estabelece no poder.

9. Você transita pelos universos da literatura e da música. A arte e a cultura são expressões ou lugares de superação das desigualdades, das injustiças e da violência simbólica?

Flávio Paiva –A combinação que faço de literatura e música tem origem na oralidade fundante da comunicação no sertão dos Inhamuns, interior do Ceará, onde eu nasci. De um lado, a necessidade de contar o que se viu e, do outro, a utilização do canto, da poesia e do artesanato como refinamento do ser. Fossem agricultores, vaqueiros, comboieiros ou comerciantes, meus antepassados tendiam a, depois de um dia duro em suas atividades, sentar-se no alpendre ou no terreiro de casa para tocar viola, recitar versos e manusear materiais do entorno na criação de formas reais e imaginárias. Mesmo com todas as diferenças de classe e de acesso ao conhecimento formal, havia nessa prática um fio de igualdade, algo que aproximava pessoas pelas representações culturais comuns.

Tenho o código dessa cultura em mim; portanto, abraço uma forte crença de que, quando livres, as manifestações artísticas e literárias são campos de sentimentos e de emoções que instigam o olhar e o agir, por meio de possibilidades conectivas nas relações sociais, ambientais e transcendentais. Os produtos das culturas dominantes, patrocinados por estratégias hegemônicas e de negócios, colocam as diversas formas de subjetivação à beira do abismo, em vertiginosos eventos motivadores da sensação de que o propósito da arte e da literatura é produzir celebridades. O grande êxito de autoras, autores, intérpretes e coletivos de criação está nas suas contribuições ao fortalecimento de laços na vida comunitária e ao rompimento com a impessoalidade e na afirmação da igualdade do diferente. Quando voltadas para esse existenciar, até as celebridades servem.

10. Como você responderia à seguinte questão de prova: Onde é possível ver e sentir cultura? (a) No ônibus; (b) No Teatro; c) Na passeata; (d) Na roça; (e) Na escola. Justifique.

Flávio Paiva –Faltou a alternativa “(f) Todos esses e muito mais”. Afinal, a cultura é o mais abundante e mais precioso bem do ser humano, pois ela permite que sejamos pessoa, e não apenas uma espécie do reino animal. Isso, no entanto, não nos autoriza a nos sentirmos superiores aos demais seres vivos e, muito menos, aos nossos semelhantes que, por circunstâncias históricas e de condições geográficas, vivem em mundos assimétricos.

A cultura está em todo lugar onde o ser humano estiver. Pode ser nos momentos de ficar sem fazer nada, nas horas de trabalho socialmente necessário ou mesmo dentro dos limites impostos pelas condições sociais, econômicas e políticas a indivíduos, grupos e sociedades. Por mais dirigidas ou autônomas que sejam, as experiências estéticas, as criações utilitárias e as transmissões de saberes e de conhecimento constituem recursos de usufruto do ser pessoa na continuidade dos nossos aprendizados, conquistas, expectativas e sonhos. Tudo começa e se realiza na cultura!

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As respostas aos questionamentos expressam a opinião do entrevistado

*Foto de Marcos Vieira

Fonte: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/controle-social/entrevistas/cultura-e-participacao-social/cultura-e-participacao-social