Guia Brasileiro de Produção Cultural 2013-2014
Edições SESC SP
OLIVIERI, Cristiane e NATALE, Edson (Org.)
Nesta edição especial de 20 anos, o Guia traz um panorama da evolução da produção cultural brasileira, incluindo entrevistas com Ana Carla Fonseca, Bete Coelho, Bia Aydar, Célia Cruz, Danilo Miranda, Felipe Lindoso, Fernando Rosa, Flávio Paiva, Maurício Pereira, Pedro Osmar e Raí.
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Curta linguagem – Entrevista com Flávio Paiva
Por Edson Natale (em 04/09/2011). Páginas 223 a 240.
Flávio Paiva é jornalista, colunista semanal do
Diário do Nordeste e autor, entre outros, do livro
Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo (Cortez Editora).
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GBPC . Você foi membro fundador e consultor de Comunicação e Cultura do Instituto Equatorial de Cultura Contemporânea. Qual era a missão dessa instituição e que trabalhos ela desenvolveu?
Flávio Paiva – A bandeira do Equatorial era a democratização da informação. No final dos anos 1980, a preparação das pessoas para o exercício da cidadania era, como ainda continua sendo, um grande desafio no Brasil. Quando falo em preparar, refiro-me ao despertar para a correlação entre pobreza econômica, pobreza política e pobreza cultural. A compreensão de que a pobreza não é uma só, tinha, e ainda tem, muita importância para o fortalecimento da participação cidadã. Não é difícil observar que de lá para cá houve significativos avanços no terreno econômico, sobretudo, no que diz respeito à melhoria da renda na base da pirâmide, embora a desigualdade ainda continue abismal. No campo cultural, nota-se que diante dos efeitos perversos da planificação financeira, industrial e comercial do mundo, muitos países começaram a se dar conta de que precisam de suas culturas para não serem apagados do mapa. No Brasil, esse fenômeno vem se encorpando, mas ainda está com seus bens imateriais muito vulneráveis aos encantamentos do mercado de conteúdos, visivelmente dominado pelas corporações transnacionais. Quanto à política, ao mesmo tempo em que conseguimos fortalecer a nossa democracia empírica e alterar os arranjos do poder no País, ao ponto de iniciarmos uma república feminina, a grande decepção está na triste revelação do comportamento de muitos dos militantes que chegaram ao poder pela força da bandeira da moralidade social e política e degringolaram para a corrupção, para a autocracia, para o assalto privado à coisa pública e o aliciamento das lideranças civis, queimando parte relevante das
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nossas reservas transformadoras. Pois bem, essas eram preocupações que moviam a ação mediadora e instigadora do Instituto Equatorial. Uma das ações do Equatorial era tirar das gavetas os dados e as informações que giravam em círculos restritos para que chegassem ao maior número de pessoas, por meio de encontros, seminários, fixação em praça pública e publicação em jornais e revistas. E nas áreas em que havia escassez de informações, foram feitos e divulgados muitos estudos em parceria com universidades, CNBB, centros de pesquisa, órgãos governamentais, meios de comunicação e entidades dos movimentos sociais e ambientais. Em 1990, instalamos na sede do Equatorial uma ilha do Núcleo de Informática e Cultura do Instituto Itaú Cultural, então dirigido pelo Dr. Mange, com obras digitalizadas de artes plásticas brasileiras e informações sobre os respectivos autores. A grande novidade era que após as pesquisas as crianças podiam escolher uma imagem para imprimir e levar para casa. Em 1991, realizamos em Fortaleza a mostra informatizada BR80. Lembro-me ainda de um trabalho que fizemos com jovens de 14 a 20 anos, por ocasião das preparações para a Eco92, realizada no Rio de Janeiro. Ao promovermos o concurso “Juventude e Cultura Ecológica”, incluímos Humor (charge e cartum) e Discurso ao lado da Música. Os primeiros colocados de cada categoria foram participar da Conferência Mundial da Juventude, em San José, na Costa Rica. Não sei medir o quanto tudo isso influenciou as pessoas, mas alguma coisa certamente ficou e deve estar por aí, quem sabe, em 2012, na Rio +20, quando o Brasil terá uma grande oportunidade de apresentar alternativas culturais, sociais e econômicas para um mundo, cuja sustentabilidade está largada às traças pelos ex-países mais ricos, que por desmedida cobiça machucaram as reservas naturais do planeta como quem atropela estupidamente uma galinha dos ovos de ouro. Esse tipo de discussão, de reflexão e de disposição para interferir positivamente na construção de um futuro sustentável estava na pauta do Instituto Equatorial, que fechou suas portas em 1995, por falta de recursos garantidores da sua manutenção.
GBPC . O Diário do Nordeste publica uma coluna sua todas as quintas feiras. Como você tem enxergado a imprensa (e você dentro dela também, claro…)?
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Flávio Paiva – A imprensa vem passando por uma crise de significados, que se estende desde a sua razão de ser até a legitimação da sua capacidade de apreciar e repercutir a vida social. Um traço marcante da atualidade é o suposto baixo interesse pelo que as coisas querem dizer. Assim, muitos meios de comunicação voltaram-se para a superexposição do banal, para as ofertas do mercado e para os interesses das suas relações políticas. Em um mundo de meios digitais, infovias e inovações tecnológicas, a imprensa continua dando simultaneamente as mesmas matérias de capa, as mesmas notícias e com o mesmo tom. Falta mais sotaque nos meios de comunicação, falta aproveitar melhor o potencial de diversidade e de pluralidade que a cultura das sociedades em redes oferece. Mas veja bem, em pouco mais de duas décadas de popularização da internet, de massificação do celular, do advento do pendrive, das empresas de serviços de relacionamentos online, dos ipods, dos tablets, da computação nas nuvens, a grande novidade mesmo entra em fase de estabilização. O mais do mesmo reduz a euforia e as pessoas tendem a querer se encontrar novamente no que são; ou seja, algo mais do que consumidoras passivas. É nesse momento que se amplia a busca por indexação no meio da enxurrada de informações que circulam aleatoriamente nas mídias. E quando isso acontece, a escolha da relevância do que deve ou não entrar na pauta da imprensa torna-se imperiosa. Além dessa questão de ordenamento e de relevo, a interação das mídias deve considerar efetivamente os temas locais, a interatividade, o repórter comunitário espontâneo ou não e, sobretudo, o fortalecimento do profissional âncora, cuja opinião ou forma de contar atrai o público para o diálogo. Muitas desses caminhos já estão sendo trilhados, mas ainda sinto falta da sinceridade da voz, aquela clareza do time que torce o comentarista de esportes ou do partido a que é filiado o repórter político. Coisas desse tipo, que a meu ver só enriquecem o jornalismo, dando um basta na hipocrisia da imparcialidade. Nesse cipoal de travas e liberdades, criei o conceito de “Jornalismo Expressionista” para designar a forma como eu me coloco no trabalho que realizo. Inspirado na mudança comportamental de cunho estético que caracterizou as artes plásticas e a literatura holandesa, russa, húngara, austríaca, tcheca e germânica na
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passagem do século XIX para o século XX, procuro reprocessar significados para que meus textos não nasçam apenas da realidade observada, mas da conjunção das circunstâncias que o envolvem. Escrevo a minha coluna semanal na madrugada da quarta-feira e a envio para a redação antes de sair para deixar as crianças na escola, pela manhã. Essa pressão do fechamento me ajuda a fazer textos mais inacabados, o que é importante para dar espaço à reação e ao pronunciamento do leitor. Não trabalho com a pretensão da objetividade, prefiro trafegar pelas encruzilhadas dos discursos, das interrogações silenciosas e das fantasias ocultas. Na minha trajetória iniciada em produções independentes e depois como repórter, articulista e colunista tive e tenho a oportunidade de experienciar muitas situações e de aprender muito com os temas que me atraem e na troca de pontos de vista com os leitores. Entretanto, a minha participação direta em ações culturais e de cidadania talvez sejam as minhas principais fontes, no meu esforço de refletir o cotidiano. Iniciei essa atuação em 1979, ao participar de um movimento de cooperativismo cultural, que chamávamos de CEP, em torno do qual convergiam poetas, escritores e músicos. Depois, criamos um coletivo de comunicação alternativa, que passou a incluir o humor, a sátira e expressões gráficas, tendo como catalisador uma revista intitulada “Um Jornal Sem Regras”. E veio a minha participação no Movimento Pró-Mudanças, um movimento civil, não partidário, para a ação política, em seguida o engajamento na democratização da informação, no Instituto Equatorial, a vivência da gestão compartilhada no Pacto de Cooperação, a luta pelo direito de oportunidade de artistas e público, no Fórum pelo Fortalecimento da Música Plural Brasileira, o ativismo contra o consumismo na infância, mais acentuado a partir do convite que recebi para contribuir com o Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, e, mais recentemente, coisa de cinco anos, a minha atuação em favor do que chamo de cidadania dos mitos, por meio da realização e do estímulo à realização da Festa do Saci. Uma coisa vai sendo trançada com a outra e me dando munição para usar em palestras e produção de textos. Nessa caminhada, desenvolvi um conceito que utilizo como guarda-chuva para tudo o que faço: Cidadania Orgânica. O cidadão orgânico é aquele que tem
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uma experiência autêntica e que está aberto ao diálogo global, mas sem esquecer que é de um lugar; aquele que age porque o todo lhe interessa, porque se sente parte do todo, e não porque é de uma determinada classe, etnia, faixa etária, partido político ou área profissional; aquele que ao associar a cultura à natureza, associa o seu futuro ao futuro do planeta. É assim que me sinto e é assim que gosto de ser e viver.
GBPC . Em termos de políticas públicas para a cultura, quais são suas expectativas para o Brasil nos próximos vinte anos?
Flávio Paiva – Em 2022 o Brasil estará completando 200 anos do seu marco histórico de independência. Espero que daqui para lá não percamos mais tempo para descobrir que, na geopolítica multipolar em configuração, o grande diferencial dos países será a cultura e não a economia ou o poder bélico. A ideologia do consumismo entrou em colapso e o negócio da guerra está tendendo a tornar-se um tabu, como preconizado por Umberto Eco. A matéria-prima mais importante na consolidação das sociedades em rede é a produção e circulação de bens e serviços culturais. A preservação da biodiversidade passa pela valorização cultural. Sem cultura, plantas, bactérias e bichos, inclusive o ser humano, não passam de mercadorias a serem exploradas à exaustão. A decisão de tratar a cultura como componente estratégico do desenvolvimento é de caráter civilizatório. Além de base de sustentação, a cultura é garantia de integridade no sistema de relações entre os povos. Por isso, em termos de políticas públicas, penso inicialmente em uma dotação orçamentária condizente com a dinamização do patrimônio cultural resultante da miscigenação. Temo pela onda de segregacionismo, especialmente o étnico, o religioso e o de gênero, que avança no Brasil, em nome da correção das desigualdades. Temo ainda pela progressão do fundamentalismo tecnológico, pela planificação valorativa que ele prega em sua cobiça de desapropirar autores, como estratégia para redução de custos no competitivo mercado transnacional de conteúdos, e pelo que pode acontecer com a noção de Domínio Público, que vem atualmente sendo forçado a perder o seu significado de bem comum para ser visto como algo que não é de ninguém. Não vislumbro, igualmente, como a sociedade vai conse-
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guir resolver a falta de distinção entre os dois sistemas colaborativos vigentes: o que catalisa energias para a dinâmica da coesão social e da sustentabilidade e o que tem como fim a canalização do altruísmo da juventude para a geração de mais-valia. Tenho defendido o estabelecimento da prática da cultura livre, com o propósito de democratizar a produção científica e cultural, com tratamento de negócio quando as obras autorais tiverem fins comerciais, políticos e religiosos. Nos últimos anos, vimos ser quebrada no Brasil a velha política de cultura que tinha os produtores artísticos, gravadoras e editoras no centro das movimentações. Houve um amplo reflorestamento cultural no País, resultando nas mais diferentes maneiras de produzir, copiar, compartilhar e distribuir o que autores e coletivos passaram a criar e recriar. Acho que esses novos modelos de interação social respondem por parte do otimismo revelado pelos jovens atuantes, de 18 a 24, entrevistados pelo projeto “O Sonho Brasileiro”, desenvolvido pela Box 1824, com apoio do banco Itaú, de 2009 a 2011: 89% dos jovens pesquisados têm orgulho de ser brasileiros, 76% sentem que o Brasil está mudando para melhor e 87% veem o Brasil como um país importante no mundo de hoje. A minha expectativa para 2022 é que as políticas que estimulam as fusões criativas sejam intensificadas, porém, espero que ao tramar novas identidades saibamos cuidar bem das madeiras de lei da nossa biodiversidade cultural, que são os criadores que servem para semente. Se não fizermos isso, se deixarmos o rolo compressor de alguns segmentos da indústria criativa sair compactando a nossa fértil textura cultural, poderemos até ter uma commodity de alta produtividade nos próximos anos, mas com o sério risco de enfraquecimento do solo e perda de fertilidade. O primeiro passo para o Brasil se firmar no cenário internacional, como um impulsionador de novos paradigmas de sustentabilidade, é deixar de lado o modelo mental de colonizado que ainda insiste em fazer do País apenas um território extrativista. Tomando emprestado uma expressão do mundo econômico, digo que precisamos falar de gestão de valor agregado no campo da cultura, o que se aplica a viabilização de políticas para a democratização da produção e do consumo cultural em todas as regiões, para o financiamento das ações de promoção da literatura e
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das artes, e para o desenvolvimento de instrumentos efetivos no financiamento, subsídios e desoneração relativos às atividades culturais. Não devemos esquecer, contudo, que acima de tudo cultura é um direito humano essencial.
GBPC . Em termos de políticas públicas para a comunicação no Brasil, quais são suas expectativas para os próximos vinte anos?
Flávio Paiva – Espero que até lá tenhamos um Conselho de Comunicação decente, que atue realmente como uma instância capaz de fazer valer os interesses da Sociedade Civil. Imagino um conselho que contribua para distinguir claramente aspectos fundamentais que beneficiem o direito à informação, tal como a diferença entre a liberdade de expressão, enquanto manifestação do pensamento, e as fronteiras da comunicação mercadológica; um conselho que dê foco às finalidades culturais, educativas, informativas e de promoção da sociabilidade nas concessões públicas de comunicação; que favoreça a desconcentração da mídia; que contribua para a diversidade de vozes e sotaques na integração multirregional brasileira; que influa na regulação da publicidade e da propaganda de produtos e serviços infantis, de modo que deixem as crianças em paz e passem a ser dirigidas aos adultos e em horários adequados; que defenda a existência de políticas diferenciadas para a comunicação comunitária e que acabe de vez com essa prerrogativa socialmente insalubre dada a políticos e pastores para que operem e, em muitos casos terceirizem, canais de comunicação. Espero da mesma maneira que seja implantada o mais breve possível a infraestrutrura para a oferta de banda larga em todo o País. Isso requer que o Brasil, por ser uma sociedade historicamente aberta, receptiva e que não tem medo de mudar, tenha um bom código regulatório da internet. As questões de privacidade, acesso, neutralidade e de responsabilidade pelo que cada um disponibiliza na rede devem ter total transparência para facilitar o trânsito livre do usuário e para dar amparo à interpretação dos juízes em caso de conflitos. Trato os ambientes de fruição nas janelas das redes como logradouros públicos. As infovias são estradas, ruas, becos e avenidas da geografia digital. Por isso, em termos de comunicação social, observo o marco civil da
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internet como uma corresponsabilidade entre o governo, a iniciativa privada e a sociedade. Somente um acordo tripartite de gestão compartilhada proporcionará as condições para que não haja retrocesso no uso democrático da web, nem que a rede fique entregue ao sabor dos planos homogeneizante e massificantes das corporações e do mundo do crime. Essa é uma guerra de alta complexidade, travada entre desinformados e desenformados, onde infelizmente tem prevalecido a tática de mostrar ocultando, desenvolvida com muita grana em ações de advocacy do mercado digital. Nesse emaranhado de teias e plataformas físicas e virtuais, fico sempre acreditando na possibilidade de uma inclinação humana para a consciência de que por mais que seja encantador não devemos nos subordinar às criações da nossa inteligência e, sim, colocá-las em favor da melhoria da qualidade de vida individual e coletiva.
GBPC . Em 1996, no Sindicato dos Jornalistas do Ceará, você lançou um conceito que chamou então de MPB – Música Plural Brasileira. Como está a Música Plural Brasileira hoje?
Flávio Paiva – Quando criei esse conceito, eu vivia uma certa aflição, provocada pela dissonância existente entre a riqueza, a abundância, a qualidade e a diversidade do que se produzia em música no Brasil e uma sensação de esgotamento da nossa inventividade, como um mau agouro que reverberava da mesmice da indústria fonográfica. Aquela passividade consumidora, aquela forçada anorexia estética, não traduzia o valor social, artístico e cultural que se manifestava em todo o País, na música de Carlinhos Brown, Helena Meirelles, André Abujamra, Chico César, Daúde, Selma do Coco, Titane, Chico Science, Siba, Tom Zé, Laura Finocchiaro, Cidadão Instigado, Anna Torres, Eliakin Rufino, Rebeca Matta, Dona Militana, Antônio Nóbrega, Edvaldo Santana, Adriana Calcanhotto, Mazé do Bandolim, Vange Milliet, Mônica Salmaso e de tantos outros artistas de dentro e de fora do eixo regional e comercial. No final daquela década, sintetizei tudo isso dizendo que: “A diversidade ganha corpo nas várias regiões do País e a tecnologia facilita essa integração. É só a gente querer. Existe uma nova realidade, a da Música Plural Brasileira” (MPB: Música Plural Brasileira, jornal O Povo,
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caderno Vida & Arte, Fortaleza, 28/04/1999). Com esse conceito começamos a trabalhar uma fuga do aparente vazio. No meu CD “Rolimã” (Camerati, 1994), reuni parte significativa de quem naquele momento atiçava a pluralidade no Ceará, tais como Kátia Freitas, Marta Aurélia, Olga Ribeiro, Edmar Gonçalves, Ricardo Black, Mona Gadêlha, André Vidal, Eugênio Leandro, Calé Alencar, Aparecida Silvino, Falcão, Valdo Aderaldo e Paula Tesser. Por ocasião do lançamento do “Rolimã”, o Cláudio Lucci veio a Fortaleza e de conversas comigo e com a cantora Mona Gadêlha, surgiu a ideia de fazer uma fábrica de discos no Ceará, concretizada pouco tempo depois, com a criação da CD+. Estávamos com a cadeia da música completa: bons compositores, bons músicos, bons intérpretes, bons estúdios e uma fábrica. Nessa agitação senti vontade de fazer alguma coisa que cruzasse experiências e concepções distintas, que tinham como convergência a brasilidade inquieta e fizemos, Paulinho Lepetit, Anna Torres e eu, o CD “Terra do Nunca” (Plural de Cultura, 1997), com total liberdade de experimentação. Em um plano mais coletivo, criei o projeto Brahma Cultural, que patrocinava a visibilidade da música plural brasileira, em diversos espaços de Fortaleza. Foi nessa fermentação que surgiu o projeto “Sexta com Arte” do Sindicato dos Jornalistas, que durante os anos de 1995 e 1996, foi referência de música plural brasileira, numa integração de artistas locais entre si e com artistas nacionais alternativos. O jornalista Moacir Maia, que era o presidente do Sindjorce, é também um agitador cultural e, juntos, criamos o Fórum pelo Fortalecimento da Música Plural Brasileira, movimentação que tratava do direito de oportunidade, tanto do artista de mostrar o seu trabalho, quanto do público, de saber o que estava sendo feito além das fronteiras do jabá. Uma das maiores conquistas desse fórum foi a aproximação de artistas de gêneros, ritmos e estilos diferentes. Foi no Fórum da MPB que nasceu, por exemplo, a Feira da Música no Ceará, que já vem há uma década trabalhando na solda dos elos da cadeia produtiva da música. Criamos também um portal, que era uma espécie de mistura do que viria a ser a Wikipedia e o Facebook, ou seja, a produção do conteúdo era colaborativa e todos tinham os caminhos para chegar a todos e qualquer um. O fórum acabou sendo atropelado pela Secretaria da
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Cultura do governo do Ceará, que inspirada no sucesso dessa iniciativa da sociedade civil resolveu fazer um fórum do tipo chapa branca e, no final das contas, não sobrou uma coisa nem outra. Mas eu diria que toda essa agitação dos anos 1990 serviu de prólogo para o que está acontecendo hoje. O Brasil vive um momento de grande efervescência criativa, embora a indústria cultural, a analógica e a digital, insista nos remakes, no vintage, no cover e nas fórmulas tradicionais de faturar mais com menos. Os inúmeros coletivos musicais, filhos das convergências possibilitadas pelas novas mídias, pelo processo de valorização da cultura popular e pela descoberta comunitária da diversidade e da pluralidade musical brasileira, assim como as bandas e os artistas como Karina Buhr, Jardim das Horas, Thiago Petit, Dona Zefinha, Anélis Assumpção, Móveis Coloniais de Acaju, Vitoriano, Lucas Espíndola, Rodolfo Rodrigues, Montage, Lulina, Flávia Bittencourt, Mombojó, Tulipa Ruiz, A Barca, Roberta Sá e a Isca de Polícia estão aí para dizer do contrário, para firmar e afirmar que a Música Plural Brasileira é um patrimônio dinâmico a ser curtido… e cuidado física e virtualmente. Contando de Alberto Nepomuceno para cá, a história da nossa inventividade musical com sotaque da diversidade e da pluralidade é um incomparável exemplo do exercício das fusões criativas.
GBPC . E o Pacto de Cooperação do Ceará: o que era, como nasceu e quais suas consequências?
Flávio Paiva – O Pacto foi uma ação de cidadania que por toda a década de 1990 promoveu no Ceará a descoberta de causas comuns em torno das quais as pessoas passaram a se unir e a se mobilizar. Era uma rede de cidadãs e de cidadãos que, ao construir convergências, passou a agir na gestão do que é público, nos espaços de tangência, nas áreas de interseção entre os campos governamentais, da iniciativa privada e da sociedade civil. O Pacto de Cooperação tinha como originalidade essencial, o fato de o seu produto ser o próprio processo. Nas reflexões que à época fizemos, o consultor João de Paula Monteiro e eu, sobre esse movimento, tratamos o modelo como Gestão Compartilhada, considerando a conexão que se desenvolveu entre agentes autônomos
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complementares que cooperam para atingir objetivos convergentes. O Pacto foi amplamente difundido, replicado e adaptado a ações semelhantes desenvolvidas em diversos estados brasileiros, tais como os pactos regionais do Paraná, de Alagoas, do Pacto Amazônico, do Pacto pelo Desenvolvimento do Rio Grande do Norte, do Pacto Novo Cariri, da Paraíba, do Fórum de Empresários Paraenses pelos Direitos da Criança e do Adolescente, do Pacto pela Educação de Minas Gerais, do Pacto de Rondônia e do Fórum de Palmela, em Portugal.
GBPC . Atualmente você faz parte do conselho do projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana. Pode nos contar um pouco mais a respeito desse trabalho que relaciona as questões da infância com o mercado?
Flávio Paiva – O projeto Criança e Consumo é um dos eixos de atuação do Instituto Alana, instituição pensada e presidida pela educadora e empresária Ana Lúcia Villela, que trabalha educação e cultura à base de brincadeiras e trocas criativas desde 1994 no Jardim Pantanal, periferia de São Paulo, e que em 2010 passou a apoiar o Instituto Brincante, na Vila Madalena, que é um equipamento de exercício da brasilidade, criado em 1992 por Antônio Nóbrega e Rosane Almeida. O Criança e Consumo começou em 2005, chamando a atenção de pais e educadores para a questão do consumismo e seus efeitos na erotização precoce, no aumento da obesidade, no comportamento individualista e na formatação de modelos mentais afeitos à violência, tendo como foco de discussão e combate a publicidade dirigida à criança. A ação deste projeto passa pela realização e pela presença de sua equipe, de seus conselheiros e convidados em fóruns e debates abertos sobre o tema, além de uma atuação jurídica pragmática e efetiva, no atendimento a demandas da sociedade contra abusos da comunicação mercadológica com relação à infância e à adolescência. As abordagens do Criança e Consumo estão direcionadas para o fortalecimento das conexões humanas, na família, nas comunidades e na relação da cultura com a natureza, de forma que sejam consideradas as consequências sociais e ambientais em tudo o que se faz. Frente à crise econômica, social, política e ecológica vigente, o Instituto Alana trabalha pela construção de um consenso de valores, inspirado na
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dignificação da infância, onde a maternidade e a paternidade sejam percebidos e considerados como o mais importante dos trabalhos humanos. Em 2009, o Alana editou e publicou o livro “Honrar a Criança – como transformar este mundo”, organizado pelo músico e compositor canadense Raffi Cavoukian e pela psicóloga estadunidense Sharna Olfman, que traz um excelente conjunto de textos de escritores, executivos, professores, políticos, físicos, pesquisadores, teólogos, psiquiatras, psicólogos, biólogos, pediatras, artistas, ativistas, filósofos e pedagogos, inspirados por um ponto de fuga traçado por Raffi, sob o conceito de “Honrar a Criança”. Muitos países já estão há um bom tempo nessa luta pela dignidade na infância, diante do conflito da ética na publicidade, ora desenvolvendo legislação específica e ora facilitando a tomada de consciência das pessoas, para que reajam aos sedutores estímulos da felicidade empacotada, que inibem as nossas escolhas de vida. Tenho afirmado que o consumismo é uma doença de adulto que pega em criança, sendo assim, trata-se de um tema cultural que não se limita às questões de gênero, classes, religiões e partidos políticos. Ações como as que são praticadas pelo Instituto Alana são fundamentais porque contribuem para o processo de reversão do quadro de crise de sociabilidade e de esgotamento dos recursos naturais do planeta.
GBPC . Quais projetos com foco na educação infantil chamam sua atenção hoje em dia no Brasil?
Flávio Paiva – Várias experiências de ação educativa, em uma também variada gama de formas de atuação, têm despertado o meu interesse. O próprio trabalho do Instituto Alana, do qual já falei, é um deles. Os projetos socioeducativos do Espaço Alana, no Jardim Pantanal possibilitam que crianças daquela comunidade, conhecida pela precariedade dos seus indicadores sociais, contem com apoio de mediação cultural na educação infantil, em atividades artísticas, recreativas e desportivas, desenvolvidas no contra-período escolar e na formação dos seus educadores. Aqui em Fortaleza, temos a Edisca, que é a Escola de Dança e Integração Social para Criança e Adolescente, criada em 1986 dançarina e coreógrafa Dora Andrade, onde a interdisciplinaridade
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se dá com base em uma pedagogia centrada na dignificação da infância pela arte, pelo ensino formal e pelo estreitamento da sua relação com a família e a comunidade. No interior do Ceará, temos também a Fundação Casa Grande, em Nova Olinda, que vem desde 1992 promovendo educação e cidadania para crianças e adolescentes por meio da gestão cultural. Ali, sob o olhar apaixonado do seu fundador e diretor Alemberg Quindins, a meninada cuida de tudo, da memória, da comunicação, das realizações artísticas e da atividade do turismo. Os visitantes se hospedam nas próprias casas das meninas e dos meninos e são convidados a fazerem pesquisas nos laboratórios de conteúdo e de produção da instituição. Na cidade de Cruz, litoral oeste cearense, conheço também a aplicação efetiva de um projeto maravilhoso, voltado para o fortalecimento da cultura do brincar, que é o “Ceará Cresce Brincando”, da Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Estado do Ceará (APDMCE), com apoio do Unicef e do Instituto Stela Naspolini. É um dos mais de dez centros de referência do brincar instalados no interior cearense, que englobam as narrativas das brincadeiras do corpo e as brincadeiras das palavras e do pensamento. A brinquedoteca de Cruz tem uma arquitetura simples e funcional, com entrada livre para luz, vento, crianças sozinhas ou com acompanhantes adultos, e fica em uma praça, com ladrilhos que têm forma de amarelinha e jogo da velha, ladeada por pés de carnaúba, uma palmeira típica da região. Um aspecto que considero muito importante nessa ação é a interação da criançada com os mais velhos, especialmente avôs e avós, através de histórias que dão à memória uma dimensão presente.Em Carapicuíba, na grande São Paulo, a educadora Maria Amélia Pereira (Peo), vem há mais de três décadas praticando um processo educacional que, em um sítio de farta natureza e inventividade lobatiana, chamado Centro de Estudos Casa Redonda, une crianças de classes sociais diferentes para o aprendizado da brincadeira. Ainda na região metropolitana de São Paulo, conheci o Reino da Garotada de Poá, um ambiente informacional bem contextualizado na vida comunitária, onde o repertório cultural e comportamental das crianças existe concretamente como parte do seu grupo social. Isso há quase 70 anos. A coordenadora Rosely Lordello calibra a dinâmica do Rei-
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no conforme o tempo da aprendizagem infantil e dos adultos que ao mesmo tempo que aprendem as profissões de padeiro, carpinteiro, encanador, eletricista e confecções, dentre outras, contribuem para a manutenção do espaço em uma convivência compartilhada com as crianças. Outro projeto com foco na educação infantil que muito admiro é a Jornadinha Literária de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, idealizada e dirigida pela professora Tânia Rösing. O trabalho prévio com as obras, a intensa convivência entre leitores, educadores e autores, a realização em uma cidade polo regional acolhedora e a organização com alta eficiência e destacado calor humano são alguns dos atributos que fazem dessa ação o maior e mais relevante encontro de formação de leitores do Brasil. Quando estive lá em 2009, fiquei encantado com o quanto as crianças tinham mergulhado nas histórias e nas músicas que escrevi e compus para elas. As jornadas surpreendem por produzir uma ambiência capaz de, a um só tempo, aproximar e disseminar a literatura e suas conexões com outras linguagens formadoras do ser humano integral, tendo como princípio a satisfação da descoberta. Os projetos de estimulo à leitura e à escrita, do Instituto Ecofuturo, criado em 1999 e mantido pela Suzano, também são muito bons e têm como premissa a feliz ideia de que “um mundo diferente é consequência de um pensar diferente”. Na cidade onde eu nasci, Independência, no sertão dos Inhamuns, a ONG História Viva criou em 2009 um prêmio literário anual que leva o meu nome, com a finalidade de estimular crianças e adolescentes a revolverem experiências do pensamento, com temas que procuram incitar à quebra da lógica das coisas sempre apressadas impostas ao cotidiano. Sinto-me muito honrado com esse prêmio porque ele realmente tem muito a ver comigo, principalmente no que diz respeito à construção de novas representações no processo de busca pelo fortalecimento dos valores existenciais, como estímulo a um jeito de pensar o mundo objetivo, a partir da evocação do humano. Há outros projetos, que não conheço de perto, mas dos quais tenho boas referências, como a Fundação Otacílio Coser, do Grupo Coimex, que vem desde 1999 disseminando uma metodologia que estimula a comunidade escolar a adotar modelos de gestão que passem pela corresponsabilidade da escola, da família e de educadores volun-
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tários na formação de crianças e adolescentes; os empreendimentos do selo Palavra Cantada, criado em 1994 por Sandra Peres e Paulo Tatit, direcionados para a infância, tornaram-se uma referência nacional na área da música educativa de qualidade e a Fundação Gol de Letra, instituída em 1998 pelos ex-jogadores de futebol Raí e Leonardo, que atua em São Paulo e Rio de Janeiro, com educação integral e práticas socioeducativas. Enfim, o Brasil tem muitos e bons projetos no campo da educação infantil. Alguns merecem replicação, universalidade.
GBPC . E já que estamos falando de infância, conte-nos um pouco da sua infância no sertão?
Flávio Paiva – Bom, nos raros dias de chuva eu gostava de tomar banho na rua só de calção e com os pés descalços, deslizando o corpo com os braços abertos nas poças d’água, recebendo a hidromassagem das bocas de jacaré e soltando barquinho de papel na correnteza das coxias. Essa brincadeira virou música e história no meu livro/cd “Flor de Maravilha”. Boa parte da minha infância está representada no meu trabalho infantil e infantojuvenil. São brincadeiras com borboletas e carneirinhos, jogos de macaca (amarelinha), sons de rói-rói e recordações de carícias, cafunés e seres fantásticos. No livro/cd “Benedito Bacurau”, sintetizo o espírito da infância nas corujinhas de estrada e o que elas têm em comum com a meninada gritando palhaço na rua para entrar de graça no circo. Costumo dizer aos leitores que os personagens de “Titico achou um anzol” são meus amigos de infância. E são. Eu passei a minha infância e adolescência numa intensa relação com preás, carcarás, casacas-de-couro, pebas e jaçanãs. Essa turma toda nunca saiu das minhas lembranças. A minha convivência com caiporas e sacis entrou nas páginas e nas faixas do cd do livro “A Festa do Saci”, assim como o meu costume de admirar e brincar com cupins, está presente nas músicas e no texto de “A casa do meu melhor amigo”. Ah, se eu for ficar aqui contando tudo, não sei em quantas linhas esta resposta vai parar. Posso dizer que sempre ajudei os meus pais nos afazeres domésticos e na criação de ovelhas, assim como ajudava o meu avô em sua bodega nos dias de feira. Tive o privilégio de ter uma família, uma escola e uma comunidade toda a me educar. Tudo o que eu fazia era parte de uma grande
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brincadeira. Podia ser fazendo uma casa na árvore, indo pegar água nas cacimbas em carrinho de forquilha ou travando luta de espadas de talo de carnaúba do outro lado do açude. A vida valia mais por ser integral. Tudo estava interligado. Talvez por isso eu continue cultivando essa característica da organicidade como um dos meus bens mais preciosos.
GBPC . Para você, qual a profundidade do conceito de sustentabilidade atual e como incorporar a infância a esse conceito?
Flávio Paiva – O padrão masculino que determinou os destinos da humanidade até hoje, entrou em colapso, com o seu belicismo, sua mentalidade essencialmente competitiva e sua omissão na marcha destrutiva da cultura sobre a natureza. Sem querer ser apocalíptico, mas só consigo ver três saídas para não inviabilizarmos a experiência humana no planeta: intensificar a ascensão feminina às esferas de influência e decisão; não esperar pelo medo das tragédias naturais e sociais para procurar mudar e fortalecer a formação da ecoconsciência como tendência predominante em todos os espaços da vida em sociedade. Nesse sentido, a minha lista de principais desafios resume-se às ações sobre as causas do esgotamento dos recursos naturais do planeta, sobre a instituição de novos parâmetros para a coexistência e sobre as descobertas dos encantos do cotidiano. Como diz Rilke, “o trabalho de ver está feito”, a grande obra da atualidade é aprender a amar o mundo. Quando critico os discursos de sustentabilidade das empresas é porque, via de regra, são sofismas, falas superficiais, impressas em livros de capa dura, com vistas à mera obtenção de boa imagem pública. Para mim, o compromisso com a sustentabilidade no âmbito das pessoas jurídicas deveria começar com o incentivo para que os funcionários tivessem mais tempo de permanência com os seus filhos, com participação em campanhas de amamentação, com a valorização estética e com tudo o que efetivamente contribui para a qualidade de vida. Se observarmos a história da humanidade, podemos ver que herdamos e seguimos construindo grandes atos virtuosos, impulsionados pelo fenômeno criativo da intuição e da razão, que podemos adotar como prática consciente na nossa vida cotidiana. Para
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uma palestra que fiz no mês de maio/2011, dentro das comemorações do centenário do Colégio Santa Cecília no Ceará, organizei sete desses atos, como meio de dizer que acredito na nossa capacidade de superação: cooperação, tolerância, generosidade, idealidade, moralidade, alteridade e gentileza. É isso, precisamos apenas dignificar o que somos e o que está perdido por trás dos falsos desejos, comuns na sociedade do consumo e do desperdício. Entendo a coerência do filósofo Jean-François Lyotard quando ele diz que já não contamos mais com as metanarrativas que serviam de suporte a sistemas, doutrinas e movimentos ideológicos, mas discordo que tenhamos chegado ao que ele chamou de pós-modernidade. A modernidade não acabou, está em pleno conflito de significados e, por este ângulo, prefiro refletir tudo o que está acontecendo à luz do que o antropólogo George Balandier e o filósofo Giles Lipovetsky chamam de supermodernidade e hipermodernidade. Precisamos de uma metáfora forte para perseguir. Os pensadores da modernidade têm recorrido à figura do caçador e do jardineiro para alternar momentos distintos do comportamento da humanidade. Criei duas metáforas para arrumar melhor o assunto na minha cabeça; a do lenhador e a do lavrador. Na ordem que trabalho a minha percepção está o caçador, o jardineiro, o lenhador e o lavrador. Para mim, o lenhador e não o caçador, representa o ciclo da hipermodernidade, pois ao destruir a própria base de subsistência, ele afugenta e mata os seres vivos. Proponho que não voltemos à racionalidade do jardineiro, que como todo bom iluminista pensa muitas vezes que é o dono da beleza do jardim. Sejamos lavradores, depois de criar as condições para o mundo que virá após a hipermodernidade; o lavrador está mais afeito a respeitar à terra, a cultivar a simplicidade, a organicidade, a fazer a semeadura do que é preciso produzir para viver, a colher os frutos de uma relação integrada com a natureza e do uso da ciência e da tecnologia em favor do usufruto pleno do que a vida nos oferece. É nessa dimensão que entendo a profundidade do conceito de sustentabilidade. E não há como se chegar a esse nível de sofisticação social se não aproveitarmos a grandeza da inocência e da ingenuidade transformadora das crianças.
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GBPC . Sua resposta nos remete ao tema da alfabetização emocional. Poderia nos falar um pouco a respeito disso?
Flávio Paiva – Claro que sim, esse é um tema sobre o qual tenho me debruçado constantemente, embora não tenha ainda esboçado uma compreensão que atenda à minha inquietação sobre o assunto. Eu diria, no entanto, que a necessária revisão da racionalidade inspirada no Quociente de Inteligência (QI), tem tentado trazer a emoção para o primeiro plano da experiência do aprender. Assim, o componente motivacional da Inteligência Emocional têm sido objeto de discussão em muitas publicações, algumas best-sellers, diga-se de passagem. É um passo relevante que a pedagogia vem dando, mas particularmente acho que esse avanço terá mais sentido quando a emoção estiver mais intrinsecamente vinculada a outros atos de aprendizagem, a exemplo da apreensão e da elaboração cultivadas a partir do observado e do pressentido pelos sensores dos afetos, dos sentimentos e da memória, nas dimensões da ética, da estética, da lógica, da espiritualidade, do mítico e da relação dialógica existente entre a ciência dos saberes e a epistemologia, entre cultura e educação. O pensamento cooperativo, o senso de interdependência e o amor pelas ideias e pelos ideais, tão urgentes para a construção da sustentabilidade, tem um pé na individualidade e o outro nas aspirações coletivizadas. Neste caso, mais do que estar bem consigo mesmo faz-se indispensável a compreensão de que as pessoas e os grupos sociais sintam que são merecedoras da auto-estima que tenham ou que vierem a conquistar. A alfabetização emocional é uma das chaves para o desenvolvimento desse autoconceito equilibrado; ela integra os elementos de preparação do ser para as experiências que se estendem do maravilhar-se ao indignar-se e para a capacidade de ação em sua inacabada busca por um estado de felicidade.