Flávio Paiva em raízes e antenas
FAC-SÍMILE
O cronista Flávio Paiva estréia amanhã sua coluna quinzenal, no Diário do Nordeste. Sua publicação será entremeada, em sábados alternados, à análise literária promovida pelo professor e acadêmico Batista de Lima. As novas opções do Diário para a nossa discussão teórica cotidiana, iniciadas na última terça-feira, pela contribuição semanal do antropólogo Roberto DaMatta, abrangem ainda a pesquisa do teólogo Frei Hermínio Bezerra sobre a etimologia e o uso das palavras nos dias de hoje. Dono de um estilo que se destaca pela força das metáforas e pelos tons reveladores de sinceras reflexões, Flávio Paiva, 45 anos, conquistou um espaço de reconhecimento como compositor, escritor e jornalista. Ele parece se assemelhar com tudo o que pensa e faz. Na suas crônicas sempre procura considerar, na fugacidade do cotidiano, o que a vida oferece de essencial. Seu texto transpira espírito crítico, esperança e impulso realizador, instigando a cada olhar uma lembrança, a cada acontecimento uma idéia e a cada palavra a possibilidade de um novo significado. Flávio Paiva, que ora estréia como cronista do Diário do Nordeste, nasceu em Independência, Interior do Ceará, e mora em Fortaleza há quase três décadas, onde tem participado ativamente da vida cultural da cidade. Nesta entrevista ele fala das suas crenças, da forma como trabalha e da sua disposição em contribuir para encontrar sentido nas coisas cotidianas
Caderno 3 – Você atua em diversas frentes e está sempre surgindo com trabalhos inovadores. O que lhe moveu a seguir esse caminho da multiplicidade?
Flávio Paiva- Posso dizer que no pano de fundo desse cenário de produções está uma só razão, que resulta no meu desejo e esforço de compartilhamento de tudo o que consigo enxergar e que considero importante para as pessoas. Neste aspecto, as linguagens e os meios utilizados talvez não passem de caminhos circunstanciais. Através da música, da literatura e do jornalismo consigo chegar ao outro de forma mais escancarada para ofertar espelhos em troca de atenção. Gosto quando alguém se identifica com a emoção do meu discurso, mesmo quando há discordância com relação ao conteúdo. Digo isso porque, para mim, sentir é muito mais importante do que compreender. Por isso escrevo com a liberdade de me equivocar. O senso comum necessita da dúvida para romper com as certezas que o tornam um arriscado estado de condicionamento. O exercício mais prazeroso que faço em meu trabalho é o de tentar ver sentido nas coisas. Evidente que ao fazer isso acabo também descobrindo uma porção de artificialismos assimilados como fundamentais.
– O que, por exemplo, você acha que aparenta ter tanto sentido na sociedade contemporânea e não deveria ser visto bem assim?
Flávio Paiva- A tentativa de homogeneização da noção de velocidade em culturas diferentes é uma barbaridade. Até a velocidade da luz só encontra estabilidade no vácuo. Na água, no ar e em outros meios absorventes ou dispersivos ela muda a rapidez da sua propagação. Na humanidade, como na física, ser veloz também varia conforme os costumes, as crenças, os saberes e os estilos das gentes. Forçar o ritmo de vida das pessoas por imposição do fundamentalismo de mercado desrama séculos de valores culturais que levaram tempo para vingar. Estamos sofrendo com isso no Brasil. Entramos em um jogo sem discutir as regras. De tanto correr sem saber para onde, muita gente começou a criar efeitos, como se não necessitasse de causa alguma para isso. O resultado tem sido a desorganização dos desejos das pessoas, dos seus negócios, dos seus sonhos e das suas comunidades. A vida é lenta. Pode até ter seus momentos de agitação, e é bom que tenha, mas em si é lenta. O fenômeno da comunicação instantânea, do chamado tempo real, precisa estar posto em nosso favor e não contra nós numa desagradável situação de dependência.
– Ainda que essa constatação possa parecer pertinente, você não acha que a dinâmica evolutiva produz tendências que invariavelmente alteram o sistema de vida cotidiano?
Flávio Paiva- Costumamos observar esse processo com base nas exceções, quando a sabedoria popular adverte que se deve medir a velocidade de um comboio pelo seu vagão mais lento. O que muitas vezes aparece como tendência não passa de simulações do rabo que quer balançar o cachorro. Na estatística existe um termo chamado moda, que quer dizer o valor de ocorrência mais freqüente, e que, a meu ver, estaria bem mais apropriado para sinalizar as nossas inclinações sem gerar tantas distorções de entendimento. Quero dizer que ao invés de avaliarmos os avanços do mundo com base apenas no lançamento de um novo modelo de celular capaz de fazer tradução simultânea, deveríamos querer saber se juntamente com novidades da telefonia móvel estão surgindo também soluções paralelas para o problema da Aids no Botsuana. Esta calibragem de moda deveria ser a escala do desenvolvimento. Sem este tipo de confrontação jamais conseguiremos compreender como é que no Mato Grosso do Sul, o Estado que é um dos maiores celeiros da nossa intensa produção de alimentos, as crianças dos povos caiuá estão morrendo por desnutrição. Não é concebível seguir assim, como se a subjetividade social não existisse e a estrutura da vida cotidiana não fosse diferente em todas as sociedades.
– Qual a sua utopia? Quem lhe influenciou? Como você costuma fazer essas conexões que deslocam os problemas periféricos para o centro do debate?
Flávio Paiva- Todas as pessoas me influenciam. Tudo me influencia. Procuro estar ligado nos sinais das nossas raízes e antenas. Sempre gostei de apreciar o mundo reformulando as informações que me chegam a todo instante. Faço isso com naturalidade, inteireza e por impulso transbordante. Sei que me iludo com uma certa facilidade e com isso aprendi a ter coragem de me frustrar. A ilusão é o cadinho da esperança. Sem ela a realidade seria insuportável. Somente a valorização do que temos de mais especial no nosso jeito imperfeito de descobrir saídas para o futuro pode quebrar a cultura da destruição que predomina na nossa busca cega pela sobrevivência. A minha utopia é que um dia possamos experimentar a utilização do parâmetro humano para medir o desenvolvimento. Algo como se o nosso ordenamento de valores começasse pela cultura. Dentro desta visão, a cultura produziria a educação; a educação definiria a ética; a ética fundaria a política; a política organizaria a economia e a economia sustentaria a convivência social. Sei que parece devaneio diante de uma realidade na qual a economia produz a ética e tudo termina no vazio da cultura do consumismo. Sou muito influenciado também pela sensação de plenitude que encontro nas artes e na literatura…
– Como é que você consegue tempo para escrever e compor, sem deixar de lado a sua vida afetiva e a sua atuação como profissional de comunicação?
Flávio Paiva- Digo que não preciso de um departamento específico para isso. A literatura e a música simplesmente fazem parte da minha vida comunitária. No sertão onde nasci, as pessoas trabalhavam o dia inteiro como vaqueiros, agricultores, comerciantes, enfim, em qualquer atividade produtiva, e à noite sentavam nas calçadas para contar histórias e tocar viola. E ninguém tinha essa neurastenia de querer ser artista. Em condições normais é da natureza de todo ser social compartilhar a estética dos seus agrupamentos, quer seja no bairro, na escola, no trabalho ou navegando na internet. Sinto-me com a grande responsabilidade de estar vivendo um momento tão rico de transformações profundas em todo o mundo. O livre arbítrio ainda está conosco. Resta descobrirmos o que faz sentido na nossa recuperação do futuro.
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