O Povo, Vida & Arte, 28/03/2009

Eu era assim – infância, cultura e consumismo, do jornalista Flávio Paiva, tem lançamento hoje, às 17h30, no Centro de Referência à infância 

Henrique Araújo 
especial para O POVO


Embora seja jornalista e escritor, Flávio Paiva, 50, vem se tornando cada vez mais conhecido como uma espécie de advogado de uma criança especialíssima: ela é negra, usa gorro vermelho e fuma cachimbo. Vive nas matas, no imaginário do País e costuma percorrer distâncias incríveis numa perna só. Autenticamente brasileira – encontro das culturas negra, branca e indígena – a causa desse menino brincalhão ganha agora a fixidez das páginas do livro Eu era assim – infância, cultura e consumismo (Cortez Editora, 336 páginas. R$ 42). Sob esse tripé, a obra reúne artigos publicados por Flávio na imprensa brasileira nos últimos anos. Nela, o escritor debate um tema caro à contemporaneidade: a ética do consumo e seu reflexo sobre o mundo da infância. O volume divide-se em quatro partes – Infância e consumismo; A pedagogia lobatiana; A perna invisível da cultura; e O tempo das histórias infantis – e tem lançamento hoje, a partir das 17h30min, no jardim do Centro de Referência à Infância (Incere), no bairro Dionísio Torres. A festa será animada pela banda Dona Zefinha, que canta músicas de outros dois livros de Flávio: Flor de Maravilha e A festa do Saci.
Em entrevista a O POVO, Flávio Paiva antecipa os pontos flamejantes desse debate. E retoma uma campanha: Saci para mascote da Copa do Mundo de 2014, que será realizada no Brasil.

O POVO – Seu livro trata da relação entre cultura, consumismo e infância. Entre esses três elementos, a mídia. Como essas variáveis se relacionam na atualidade? Que peso cada uma delas tem na construção de um tecido social saudável?

Flávio Paiva – Um ponto muito importante que devemos ter como premissa ao tratar desse assunto é que nesse debate não cabe qualquer demonização. Esse é um problema transcultural, espalhado pela maioria das nações, que exige uma reeducação coletiva. A construção de um tecido social saudável passa pela crise africana, pela crise ambiental, pela crise demográfica, pela crise do consumismo e pela crise do sistema financeiro internacional. O que está em jogo é o padrão civilizatório e, dentro dele, o respeito à diversidade e a pluralidade cultural e à cultura da infância, como maneira peculiar da criança se apropriar dos saberes que a ajudarão na formação do adulto. Matar a infância é anunciar a morte do adulto. Por isso considero este um dos mais graves e urgentes temas da atualidade. Num cenário tão desolador, cabe a mídia assumir o seu papel educador no seio da sociedade. A educação, que antes era cuidada pela família, pela escola e pela igreja, hoje conta com variados agentes e a maioria desses agentes não têm a menor consciência do papel que deveriam desempenhar.

OP – Em seus textos, há grande preocupação com o conteúdo veiculado atualmente na publicidade televisiva dirigida ao público infantil. As muitas campanhas e projetos de lei que regulam o conteúdo da publicidade têm surtido algum efeito?

Flávio Paiva – Têm, sim. Muitas campanhas publicitárias abusivas estão sendo notificadas e até tiradas do ar por ação da sociedade. Isso vai desde comercial da boneca Barbie que, no Cartoon Network, vinha apresentando meninas fazendo as vezes de modelos, desfilando com poses insinuantes, até a publicidade da novela Pantanal (ex-Manchete) exibida pelo SBT durante a programação infantil, com cenas de sexo, violência e nudez. São muitos os casos. Tem um da Nestlè que está sendo avaliado pelo Procon, em que a Xuxa aparece convidando os “baixinhos” a comprar os produtos da multinacional e concorrerem a uma participação no novo filme da apresentadora; na TV Bandeirantes a sociedade tem pressionado um merchandising da Zaeli, em que uma menina aparece no programa Raul Gil fazendo propaganda; e até denúncia de uso de publicidade em material escolar, como foi o caso da Escola Espírito Santo, em Vitória, que por conta de denúncias levou a direção da escola a reunir pais e educadores para discutir o consumismo na atualidade.

OP – Os pais deveriam ter mais controle sobre aquilo que seus filhos veem ou deixam de ver?

Flávio Paiva – Esse é um paradoxo de extrema complexidade, porque ele se configura antes do problema em si. Em uma troca de ideias que fiz com estudantes de psicologia da PUC do Rio de Janeiro, sob a orientação da professora Solange Jobim, alguns deles foram bem taxativos nesse ponto que você está falando, de que cabe aos pais assumirem a responsabilidade pelo que os filhos veem. Mas veja bem, as crianças de hoje são alvos de múltiplos feixes de informações e chegam a ter acesso a conteúdos que os pais sequer sabem do que se trata. A ideologia do consumismo é uma ideologia técnica e fria na manipulação de emoções. Muitos pais estão também encantados com suas carreiras e suas conquistas individuais. A encrenca começa com a vulnerabilidade dos pais e tem seu ápice no assédio da publicidade a meninos e meninas. O mais grave nessa questão é que essa perversão se torna ainda maior porque um lado sabe que está seduzindo e o outro sequer desconfia e participa do jogo sem conhecer as regras.

SERVIÇO
Eu era assim – infância, cultura e consumismo (Cortez Editora, 336 páginas. R$ 42), do jornalista e escritor Flávio Paiva. Lançamento hoje, a partir das 17h30, no jardim do Centro de Referência à Infância (Incere), no bairro Dionísio Torres.