Blog A Casa do Meu Melhor Amigo, 23/11/2010
O ano que vem será um ano muito importante para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica (Infantil e Fundamental) nas escolas brasileiras. Os sistemas de ensino do País têm até agosto de 2011 para se adaptarem a obrigatoriedade do exercício da música nas escolas, conforme determinado no texto da lei federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008.
A criação de condições para a formação artística, voltada para a cognição, a sensibilidade e a socialização estudantil, coaduna-se com as ações de reflorestamento cultural que vêm sendo implementadas pelo Ministério da Cultura em todo o País. A opção pela experiência envolvente da música é fundamental como componente intrínseco do cotidiano a um processo educativo inspirado na diversidade da cultura brasileira.
Em toda a história da humanidade a música esteve presente de alguma forma. Mesmo em épocas pré-linguísticas são evidentes os sinais da música como parte do dia a dia das pessoas e das comunidades. É comum vermos nas escavações arqueológicas a descoberta de instrumentos musicais que atestam a capacidade dos nossos ancestrais de lidar com padrões sonoros complexos.
A rigor, todos somos música. Alguns aprendem teoria musical ou a tocar instrumentos, mas não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música, os que cantam, os que tocam e os que ouvem, dançam, cantarolam e sentem sua presença no corpo e na mente. O que há, pode-se dizer, são pessoas inibidas de praticar suas habilidades musicais e pessoas que, ao se refinarem, refinam a música, merecendo assim manejo especial de madeira de lei na biodiversidade cultural.
O ato de cantar é mais natural do que falar. Para falar nós precisamos necessariamente usar um código reconhecido de comunicação, quer saibamos escrevê-lo ou não. Entretanto, para cantar basta deixar os sentimentos fluírem, agudo como o agudo dos pássaros e graves como o tom grave dos mamíferos. Em linhas gerais, inventar a canção foi mais simples do que inventar a fala. Contudo, fixar uma ou outra por meio de sinais adequados de transmissão talvez tenha grau semelhante de dificuldade e prazer.
Desde criança que gosto de inventar música. Com o saudoso amigo Pandé, fizemos o hino do nosso time de futebol; com o amigo Félix, costumava musicar romances de cordel. Fazia isso como uma movimentação espontânea da vontade, seguindo uma característica da musicalidade das sociedades nativas e africanas que se fundiram com o canto nômade dos aventureiros que povoaram o sertão. Dos aboios às cantigas de campo, a cognição musical está presente em minha vida por sincronia histórica do lugar onde nasci.
Na busca incessante de entender como pensamentos, sentimentos, esperanças, desejos e manifestações estéticas se originam, muitos estudiosos atribuem à música o poder de desencadeá-los. No livro “A música no seu cérebro” (Civilização Brasileira, RJ, 2010), o músico e neurocientista canadense Daniel J. Levitin, afirma que “a música pode ser a atividade que preparou nossos antepassados pré-humanos para a comunicação, por meio da fala, e para a flexibilidade eminentemente representativa e cognitiva necessária para que nos tornássemos humanos” (p. 294).
Afirmações como essa respaldam a decisão do Ministério da Educação e reforçam a ideia de que a música na escola não deve ter como objetivo preparar instrumentistas e cantores, nem transmitir gosto. Nada impede, porém, que essa prática estimule o talento daqueles inclinados a serem refinadores. Minha expectativa é que essa política abra espaço para que o estudante marque um encontro de caráter sugestivo com o que há de mais vibrante e desejante na essência humana.
Sempre tive comigo a sensação de que o modelo mental de um povo pode ser compreendido a partir da sua música. Uma mente germânica tem a sofisticação da música de Bach, Wagner e Beethoven, dentre outros compositores excepcionais, e os limites de conservadorismo que essa sofisticação impõe. Uma mente brasileira vive a se reinventar à flor dos neurônios, mas em geral ainda se desconhece no requinte das obras dos seus refinadores mais geniais como Villa-Lobos, Severino Araújo e Elomar Figueira de Melo.
A entrega do patrimônio musical brasileiro ao bel-prazer do mercado fonográfico, especialmente nos anos de neoliberalismo, causou danos extremamente graves no tocante à contribuição da música na atualização do desenho do nosso modelo mental. Por ser distribuída em todo o cérebro, e não apenas no hemisfério direito como se acreditava antigamente, a música tem importância inquestionável em nossas vidas. “O ato de ouvir, tocar e compor música mobiliza quase todas as áreas do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os subsistemas neurais” (LEVITIN, 2010, p.15).
Venho há uma década fazendo a experiência de associação da música à literatura, dentro da convicção de que ler e cantar é receber do jogo dos sons e das palavras a oportunidade de produzir visões. No livro/cd “Flor de Maravilha”, combinei vinte histórias e vinte músicas; no livro/cd “Benedito Bacurau”, experimentei o uso de vinhetas intercalando onze textos de literatura recitada; no livro/cd “A Festa do Saci”, a música principal surge na história em uma composição coletiva dos personagens; e no livro/cd “A casa do meu melhor amigo”, que lançarei no próximo dia cinco de dezembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, a música acontece inseparavelmente ligada ao contexto de cada um dos dez capítulos.
O que tenho aprendido com as respostas dos leitores a essa prática é que a liga da literatura com a música potencializa as emoções, não no sentido de orientar os sentimentos como ocorre com as trilhas sonoras no cinema, mas de dar mais volume às palavras, expandindo a noção de realidade no espaço de liberdade de interpretação que é disponibilizado ao leitor no campo que rebenta entre o que está escrito e que está cantado. Integrar a música ao fluxo de informações sensoriais faz bem à imagística da mente na sua construção de significados.
O processo cognitivo tem muita relação com as frequências vibratórias dos sons dos fonemas e das notas musicais. A vivência simultaneamente literária e musical aciona a consciência que temos das coisas para que possamos nos abrir às representações organizadas pelo ensino. Existem conteúdos que só encontram eco em nossa compreensão quando refletem nossos enunciados de sentimentos e emoções. Assim, o estudante pode se destravar da racionalidade para jogar com os pensamentos e seu próprio jeito de sentir o mundo.
No fenômeno perceptivo é muito importante que haja nodos de gratificação como inspiradores de estado de ânimo. Um dos grandes desafios da educação na atualidade é a busca de alternativas à aprendizagem que não desperta interesse por não ter a flexibilidade de estar no nível de habilidade de cada estudante. A minha experiência com o livro/cd, no qual a partitura integra o estatuto das ilustrações, tem demonstrado que a integração de linguagens multiplica as dimensões de trânsito da imaginação e da compreensão.
Os estudos de Daniel Levitin dizem que ouvir música aprimora os circuitos neurais, ajudando a preparar a inteligência para os desafios da linguagem e da interação social. Dentro de uma perspectiva cultural e educacional, o exercício do músculo da imaginação e da cognição, proporcionado pela reincorporação da música ao cotidiano escolar, é fundamental na reinvenção do Brasil.
Flávio Paiva In: A música na educação (Diário do Nordeste, 18/11/2010)
18 Comentários:
- 1.Antonio José Forte diz novembro 29th, 2010 em 0:24 :
A música na escola fundamental é de importância crucial para a elaboração da capacidade cognitiva, bem como da formação da personalidade e da cidadania das nossas crianças. Considero sua atitude por esse trabalho original uma coisa valiosa e que pode contribuir para o bom início de um novo tempo. Sua iniciativa me faz lembrar minha infância quando existia a música no currículo escolar. Desejo sucesso e muita música.
Grande abraço.
Antonio José Forte.
- 2.Flávio Paiva diz novembro 29th, 2010 em 0:24 :
Êpa! Um aval do nosso bruxo do piano, de um dos virtuosos da música instrumental brasileira, é para amolecer os ossos, colocar clave de sol nas costelas. Chama o Gismonti, chama o Nonato Luiz… Atraca que o Antônio José Forte está tocando com os dedos nos martelos… Grato pelo comentário-testemunho, caro amigo. Até já. Flávio Paiva.
- 3.José Brasil Filho diz novembro 29th, 2010 em 23:42 :
Muito bom caro Flavio.
Te informo que estou em Porto Alegre participando da Feira Musica do Sul. No sabado participo de um painel sobre educação musical e vou usar trechos de seu artigo para ilustrar minha fala.
Vou falar sobre minha experiência como diretor da escola de musica de Sobral, mas devo falar tb sobre a perspectiva de implantação da lei 11769.
Vc autoriza né??
Abraço
José Brasil Filho.
- 4.Flávio Paiva diz novembro 29th, 2010 em 23:42 :
Pode usar o artigo, sim, caro José Brasil, ele foi feito mesmo para contribuir com esse debate tão importante sobre o ensino da música nas escolas. Boa palestra.
- 5.Patrick Mesquita diz novembro 29th, 2010 em 23:44 :
Muito boa a sua reflexão, amigo!
Um pontapé de grande importância unir música e literatura! E digo mais. Unir música a todos os tipos de artes bem como o teatro, a dança, a pintura etc… a musa das artes permite essa transdisciplinaridade e permite com tamanha competência que, ao invés de isolar-se no contexto de aprendizagem tradicional através do canto e da leitura mecânica de bolinhas pretas, enriquece a vivência do educando cooperativamente com outras leituras estéticas.
Um abraço musical!
Patrick Mesquita
Educador Musical.
- 6.Olímpio Rocha diz novembro 29th, 2010 em 23:45 :
Grande Flávio Paiva,
Muito bom o seu artigo sobre música e educação.
Depois de lançar vários Cds/livros infantis você ainda tem um no forno que será efetivado em SP em dezembro próximo, realmente motivo para orgulho e vibração.
Parabéns e sucesso.
sds
Olímpio.
- 7.Papete diz novembro 29th, 2010 em 23:47 :
Meu caro amigo, como sempre só tenho que lhe dar parabéns pela iniciativa e pela sensibilidade em abordar assuntos tão pertinentes como este.
Do amigo,
Papete.
- 8.Flávio Paiva diz novembro 29th, 2010 em 23:54 :
E quem melhor do que você para afirmar isso, hein Papete? Você que por diversas vezes foi escolhido o melhor percussionista do mundo e que foi a ponta da lança que, juntamente com o saudoso Marcus Pereira, apresentou a música popular brasileira ao Brasil, sobretudo, no seu caso, a riquíssima música dos compositores do Maranhão. Salve, salve!
- 9.Isick Kaue Bianchini Homci diz novembro 29th, 2010 em 23:56 :
Caro Flavio,
corroboro integralmente com a sua leitura acerca da importância da música no desenvolvimento sensitivo-cognitivo. Parabéns pelo texto, está muito bem elaborado.
Obs: onde encontramos suas obras?
abraço,
Isick Kauê
Banda ZàZ.
- 10.Flávio Paiva diz novembro 30th, 2010 em 0:14 :
Muito obrigado, Isick Kauê. Quanto aos meus livros/cds, não encontrando nas livrarias, basta clicar em AUTOR, na barra de links deste blog, que aparece uma estante com os livros e depois é só clicar novamente para ter acesso direto à loja virtual.
- 11.Ana Meyer diz novembro 30th, 2010 em 1:40 :
Olá, Flávio, tudo bom?
Trabalho com programação infantil no SESC Belenzinho, e fiquei curiosa para conhecer este seu trabalho. Mas, infelizmente, no domingo não poderei ir ao show. Inauguraremos o Belenzinho no sábado.
Se puder, me envie o material e release do projeto do show (com orçamento).
Obrigada.
Abçs,
Ana.
- 12.Flávio Paiva diz novembro 30th, 2010 em 1:43 :
Tudo bem, Ana, e com você?
Primeiramente, parabéns pela inauguração do Belenzinho. Sempre dá grande alegria ver o SESC ampliando seu trabalho em favor da cultura e da cidadania. Passarei o seu contato para
a produção em São Paulo, daí vocês poderão conversar sobre a melhor forma dessa apresentação acontecer no Belenzinho.
- 13.Rúbia diz novembro 30th, 2010 em 16:19 :
Ei Flávio!
Parabéns por mais essa conquista! Fico muito feliz quando vejo livros de tanta qualidade para criança como são os seus. Unir duas grandes artes “a literatura e a música” para encantar e fazer cantar as crianças, com certeza é um presentão de amor para cada uma delas! Desejo sorte e muito sucesso! E quando vier a Minas fazer o lançamento do seu livro, me avise, será um prazer participar deste dia especial!
Beijo grande,
Com carinho,
Rúbia.
- 14.Flávio Paiva diz novembro 30th, 2010 em 16:20 :
Rúbia, minha cara, que bom receber tanto estímulo da parte de uma educadora, autora e apresentadora tão querida como você. Obrigado. Viva BH, viva Minas. Dê meu abraço ao palhaço Popó e a toda a equipe do TVX, da TV Horizonte. Em tempo: o show de lançamento vai ser transmitido ao vivo pela internet, basta entrar no site: http://www.cortezeditora.com.br
- 15.Ellen Damares diz novembro 30th, 2010 em 16:21 :
Caro Flávio Paiva,
Parabéns por mais um lançamento e pelas matérias publicadas. Leio todas!
Sucesso no lançamento! !! Se “A casa do meu melhor amigo” for lançado aqui em Fortaleza, por gentileza me avisa.
Ellen Damares.
- 16.Flávio Paiva diz novembro 30th, 2010 em 16:23 :
Claro que avisarei, Ellen, mas já adianto que você poderá ver o show de lançamento ao vivo pela internet, no dia 5/12/2010 a partir das 11 horas. Um dia desses ouvi novamente a gravação que você fez da música “Coco Verde”, (Tarcísio Sardinha / Flávio Paiva) para o cd “Dó-ré-mi”, da coleção “Lendo você fica sabendo”…
- 17.Maria Clenira Macêdo diz dezembro 19th, 2010 em 10:24 :
Obrigada Flavinho por me informar de tão valiosa criação.
Torço para que o governo exija mesmo o fiel cumprimento da Lei 11.769/2008. Lembro que no meu tempo de menina no querido Ginásio Agapito dos Santos, tínhamos aulas de música com o Prof. Fontelles, e assim, pude aos 10 anos de idade conhecer Noel Rosa e cantar com muita alegria em singelo coral, “Feitiço da Vila”. Aprendi a amar música clássica em razão do entusiasmo e riqueza de detalhes com que nos contagiava o saudoso mestre. Imagino que projetos dessa natureza resultam em inestimável bem cultural para nossas crianças, hoje à mercê da mídia massificante com seus gêneros alienantes, nem preciso citar, são tantos…
A liberdade de expressão é tudo! Mas nada como propiciar escolhas ao indivíduo, principalmente àquele em formação!
(…) Tão logo retorne de viagem, irei adquirir sua engenhosa obra e divulgá-la presenteando-a a alguns pequerruchos, aqui mesmo em Porto Velho/Rondônia, onde resido.
Natal de luz pra você e toda a família!
Grande abraço!
Kikira.
- 18.Flávio Paiva diz dezembro 19th, 2010 em 10:25 :
Em Independência, no Ginásio Sant’Anna, as informações sobre música eram passadas em aulas de Educação Artística. Também tive a felicidade de ter uma professora muito interessante, a dona Terezita Barroso, que nos motivou bastante nesse sentido… chegamos, Félix, Zezé e eu, a ter uma banda cover dos Secos & Molhados, com a qual nos apresentamos inclusive nos municípios vizinhos… Assim como você Kikira, torço para que a Lei 11.769/2008 seja pra valer. Obrigado pelo carinho do seu comentário. Natal de paz. Até já. Flávio Paiva.