Jornal O Povo, Vida & Arte, 30/06/2001

comobracos_opMATÉRIA DE CAPA 
O jornalista Flávio Paiva reuniu artigos publicados na imprensa, desde a década de 80, em Como Braços de Equilibristas, o Livro dos Artigos. Nos 90 textos escolhidos, ele põe o foco sobre a contemporaneidade, a memória, novas mídias, cultura e comportamento, que traçam o perfil de um sujeito inquieto diante do mundo e esboçam a percepção sutil de um tempo e um lugar

Eleuda de Carvalho 
Da Redação

Ele continua de Independência. Quando veio do interior, até podia ser puro e inocente, como na canção de Raulzito, mas de besta não tinha nada. Curioso com o mundo expandido representado pela capital, Flávio Paiva trazia também o universo do sertão, para dialogar com a cidade voltada para o mar.

Da pensão do Jacaré, ali no Benfica, o rapaz andava léguas até chegar na casa da namorada, no Jardim Iracema. Depois, a gandaia adolescente da Volta da Jurema, a universidade, a agitação estudantil, a efervescência da UFC nos anos 80, com o movimento político, as revistas e jornais publicados, que marcaram uma época. Entre eles, o irreverente Sem Regras , onde a caneta afiada de Tarcísio Matos fazia par com aquele jornalista principiante que se assinava Flávio D’Independência.

Nome com o qual enveredou outros caminhos, como a música, por exemplo. Já beirando os 40 anos, outra mudança substancial soprou para os lados do homem: a paternidade. Casado com a jornalista Andréa Pinheiro, ambos compartilham o filho Lucas e agora esperam um novo amor, que já tem nome, Artur. É para eles que o pai coruja dedica seu novo livro, Como Braços de Equilibristas, o Livro dos Artigos , que será lançado hoje, de 10 da manhã às cinco da tarde, no Mini Museu Firmeza, casa dos amigos Estrigas e Nice.

Vida & Arte – Na sua conversa inicial com o leitor, “À Gusa de Introdução”, você cita um artigo de Ariano Suassuna, sobre a missão do escritor. Por outro lado, a perseverança com que você aborda temas locais em tom universalista e sua inquietação do mundo me levaram a pensar no Movimento Armorial.

Flávio Paiva – O Movimento Armorial foi esse sentimento organizado, aprofundado, que em mim não é. O meu é um sentimento vadio. Não tenho uma profundidade em estudos que me dê a capacidade de elaborar uma coisa com tanta sofisticação quanto foi tudo aquilo ali. Dentro da expressão que você usou, inquietação, da relação com o mundo, de se colocar no mundo, acho até que sim. Eu diria que o ponto mais comum que tem é o da paixão, é ser cem por cento inteiro. Todo aquele grupo se identificou nessa nacionalidade, nas insígnias, nas iluminuras que atravessaram o Atlântico e se estabeleceram aqui, dentro das peculiaridades da natureza e cultura nordestina, não tenho nem como me comparar. Sou provocador do olhar, não tenho muita pretensão além disso.

V&A – Quando você diz que esse seu olhar é vadio, e portanto mais lúdico, fiz uma ligação com o prefácio que Paul Singer escreveu. Ele fala da sincera paixão que move sua escrita, que muitas vezes vai até ao exagero caricatural.

Flávio Paiva – Quem vive numa sociedade como a brasileira, com tanta abundância e insuficiências, e se permite tentar perceber o tanto que a gente está perdendo por não se observar, dá um certo desespero. E às vezes a forma de você tentar cutucar mais alguém pra isso é com o exagero. O exagero necessário para se poder olhar, como diz o Paul. Isso em mim é a mistura da convicção com a vontade de dizer. E a convicção não é uma verdade, é um espírito da necessidade, do desejo. No caso do artigo de jornal, principalmente, que sei que uma diversidade de pessoas vai ter acesso àquilo ali, o cutucão acaba sendo mais forte. É a gente se auto-acordar. Como esse cara que grito pro amigo que vai ser atropelado no meio da rua, você tem que gritar alto, tem que ser rápido, tem que empurrar o cara.

V&A – Para realizar o livro, você teve que revisitar os textos mais antigos, não só os artigos para o Vida & Arte como colaborações lá da década de 80. Você teve que burilar, mezer em alguma coisa? Em quê?

Flávio Paiva – O primeiro sentimento, quando pensei em fazer o livro, era até tentar me encontrar nesse conjunto. Quando você se dispõe a olhar e comentar as coisas, está correndo um risco seríssimo, cotidiano. Porque você não é um especialista, é um “sentidor”. Se me incomoda, eu posso falar, se me deslumbra também. Com a despretensão com que sempre fiz minhas coisas, sem anunciar verdades. É um processo. A compreensão é diferente, se você é mais novo. Fui localizando os artigos e vendo quais eram os que se identificavam. Deixei fora principalmente os artigos sobre política, mais factuais. Como critério zero, escolhi o que foi escrito que ficou atemporal, em que a reflexão é maior do que o fato. Tirei datas, por sugestão do meu amigo Wander Frota, tirei aquelas gorduras.

V&A – Quando começou o projeto de reunir os artigos de jornal?

Flávio Paiva – Quando eu ganhei esse livro ( O Ceará e os Cearenses , reedição fac-similar, pela Fundação Waldemar Alcântara, de artigos do escritor Antônio Bezerra, publicados em meados de 1890, em jornais de Manaus). Fiquei super-animado porque, de certa forma, quando você registra uma série de pensamentos, alguém, daqui a vinte, cem anos, será que vai ler esse negócio como eu estou lendo esse Antônio Bezerra, com tanta curiosidade sobre o olhar dele da época? Isso dá uma sensação muito prazerosa. Quando recebi esse livrinho, percebi o quanto está sendo pra mim, ser que faz parte de um mundo, de um lugar, de uma gente, de um jeito de se comportar, de pensar, estar dando uma contribuição como ele deu, há mais de cem anos. Esse livro me emocionou profundamente, e fico pensando se, um dia, alguém vai se emocionar com o meu livro, que tem um valor espiritual muito grande pra mim.

V&A – Em que sentido?

Flávio Paiva – É a coisa da conversa, de poder conversar sem medo de ser ridículo. Tipo assim, sem o freio de o que é que vão dizer, se estou pensando besteira ou não. Quando vi a sequência de todos os artigos, é como se eu tivesse acendido em mim uma segurança de que as coisas podem estar distorcidas ou fora de propósito, mas você sente que têm uma alma. O existir dessa alma catalogada me emociona demais.

Serviço: Como Braços de Equilibristas, O Livro dos Artigos – Flávio Paiva. Edições UFC, 360 páginas em papel reciclado. Prefácio de Paul Singer. Lançamento hoje, de 10h às 17h, no Mini Museu Firmeza (Mondubim). Preço especial de lançamento: R$ 20,00. Depois, o livro pode ser encontrado nas livrarias da cidade e na loja das Edições UFC (av. da Universidade, 2995 – Benfica). Informações: 283-4969.