O Povo, Caderno Vida & Arte, 27/4/2005

O jornalista cearense Flávio Paiva lança, hoje à noite, um novo livro de ensaios: Anel de Barbante. Por e-mail, o autor conversa sobre o livro e a cidade (perdida) que o motivou.

Ana Mary C. Cavalcante

Da redação

Ana Mary – Logo no primeiro conjunto de ensaios do livro, “Fortaleza e a decadência exuberante”, o senhor afirma: “Toda cidade provoca por si uma definição da sua imagem”. Gostaria de começar nossa conversa lhe pedindo uma definição própria da cidade atual. Como o senhor reconhece o seu terreno?

Flávio Paiva – Moro em Fortaleza há 29 anos. É um tempo que começa a possibilitar comparações da cidade com ela mesma. Falo assim porque tenho escutado muito deslumbramento de pessoas que chegam por aqui e fazem associações de Fortaleza com outras capitais de elevados índices de insegurança social e de violência simbólica, a exemplo do que infelizmente vem acontecendo com o Rio de Janeiro. E, mesmo sem deixar de estar atento ao descompasso de significados que vem ocorrendo no Brasil e no mundo, tento observar a cidade a partir do que ela tem sido efetivamente e do que podemos fazer para viver em um lugar sempre melhor. A nossa capacidade de enxergar a realidade é que nos abre oportunidades para interferências. Um dos maiores problemas que identifico na nossa cidade é o descarado uso privado dos espaços públicos. Tem também a misteriosa questão dos desabitados edifícios fantasmas, construídos aos montes sem o suporte de uma economia formal que os justifique, ao mesmo tempo em que cresce o déficit habitacional. Isso sem falar nos aspectos de submissão de boa parte dos nossos agentes culturais que sofrem o desgaste da dependência e do patrulhamento dos órgãos oficiais de cultura que invariavelmente atuam como feitores do coronelismo urbano. Quero dizer com isso que a definição da imagem de Fortaleza passa por uma inusitada sala de espelhos, na qual, ora côncava, ora convexa, a cidade se projeta entre a ostentação da megalomania e o declínio da vida social. Daí, o aumento da nossa responsabilidade na tentativa de entender o que está se passando…

Ana Mary – O senhor avalia que Fortaleza, “apesar de habitada por mais de dois milhões de pessoas” e considerando-se todos os problemas (típicos de uma metrópole) que apresenta, “ainda não é uma grande cidade”. O que falta a Fortaleza para que ela atinja esse patamar? E outra: é necessário, a uma cidade, tornar-se “grande”?

Flávio Paiva –
A acepção da palavra grande comporta o sentido de extensão territorial ocupada, contingente populacional, intensidade, valor, notabilidade e tantas outras dimensões. Tomei como referência o número de habitantes de Fortaleza por considerá-lo uma expressão pouco sadia do nosso inchaço. Com tanta gente, somos obrigados a multiplicar os nossos esforços a fim de estabelecermos as condições mínimas de convivência social. No recorte de tempo de uma década, que fiz para organizar o livro “Anel de Barbante”, dá para encontrar gabações quanto ao fato da cidade estar entre as primeiras do Brasil em número de carros importados. Da mesma forma, há quem chegue a se vangloriar de Fortaleza ser a cidade brasileira com o maior número de proprietários de apartamentos em Miami. Mais recentemente esse tipo de pabulação vem se inclinando para a distinção entre os que usam e os que não usam helicópteros. Esses são os parâmetros da boçalidade que tolhem Fortaleza de, com mais de dois milhões de pessoas, não conseguir ser ainda uma grande cidade. Ao recorrer à figura do anel de barbante, como aquele laço que colocamos em um dos dedos para não esquecer de algo que precisa ser lembrado, estou querendo chamar a atenção para toda essa anomalia figurada que nos desequilibra, mas pretendo também suscitar chamamentos ao descaso com a nossa memória, com a nossa história e, principalmente, com a nossa cultura.


Ana Mary – Passamos a viver em uma “sociedade da violência gratuita e da comunicação em rede”, o que nos conduz a uma “valorização do isolamento e, conseqüentemente, da solidão”. Resultados da “evolução”, da “modernidade” (?)… Como, andorinhas sós, escapar desse presente castrador e desse futuro lúgubre?


Flávio Paiva – A maior violência ainda é a ignorância. A incapacidade de discernimento causada pela ausência de compreensão do que está se passando ao nosso redor é de uma tirania sem igual. Garcia Lorca dizia que tinha muito mais pena de alguém que queria saber e não conseguia os meios de acesso ao conhecimento do que de quem apenas queria comer e não tinha com que se alimentar. A questão não está nas máquinas e nos equipamentos que a genialidade humana cria a todo instante para nos servir. Está na nossa incapacidade de colocá-los a nosso serviço. Temos hoje muitas possibilidades comunitárias físicas e virtuais e o que se vê é o crescimento do tédio decorrente do sentimento de inutilidade. É muito contraditório tudo isso. E nesse bojo de contradições se multiplicam os mercadores da fé, da segurança, da felicidade-já e da cultura das aparências. A quem se deixa levar pela desatenção, resta apenas o sentimento de um enorme vazio. Pior, resta uma insaciabilidade devoradora que quebra as barreiras da consciência e encontra guarida na condescendência macabra dos produtores de armas, de drogas, da fome e da destruição do meio ambiente. Para manter a alta produtividade dos seus fornecedores, a exemplo do que ocorre com os plantadores de transgênicos, pagam royalties aos donos da tecnologia da subordinação. O caminho menos traumáticos para sairmos dessa encruzilhada me parece ser o rompimento com o estigma da celebridade penada instalado em nossos desejos. Temos que exorcizar essa coisa do consumismo que nos consome. Deveríamos ter mais tempo para meditar, para contemplar, para descobrir o que realmente nos interessa. A maior parte de tudo o que nos esforçamos para fazer, para conseguir realizar, muitas vezes não tem nada a ver com a média de bem-viver que produziria a nossa felicidade. Aprendendo a respeitar as diversidades culturais, a valorizar o que fomos e o que somos e a ter confiança no tanto que podemos escolher o que vale a pena em nossas vidas, não há motivo para querer escapar do presente nem para pensar em futuro sombrio.


Ana Mary – “Estamos sem imaginário urbano. Falta mais conhecimento e difusão da nossa memória individual e coletiva”, o senhor atenta. De que maneira(s) chegamos a este ponto? Quando começamos a perder o rumo?


Flávio Paiva – Às vezes fico pensando como seria a vida em Fortaleza se tivéssemos mais apreço pelos elementos históricos e culturais que nos distinguem. Teríamos menos complexo de inferioridade por não possuirmos muitos prédios históricos e nos sentiríamos mais honrados em contar os feitos heróicos dos povos nativos que tantas vezes expulsaram os colonizadores do nosso litoral e como, entre guerra e poesia, nos tornamos um lugar acolhedor. Teríamos menos complexo de exclusão por não termos o mesmo padrão de riquezas naturais de algumas outras regiões brasileiras e nos ocuparíamos mais em potencializar a força dos nossos ventos constantes, da fotossíntese e da nossa reconhecida inventividade. Teríamos, enfim, menos atenção pelo que não temos e mais dinâmica no processo de formação de uma sociedade que há apenas dois séculos passou a ter autonomia política. É isso mesmo, o Estado do Ceará é mais novo do que Fortaleza. A cidade foi formada por retirantes e comerciantes que vinham do sertão exportar peles, algodão, oiticica, mamona e cera de carnaúba. Com isso abriram-se também alguns canais de importação e a imigração de negociantes estrangeiros. Não havia uma compreensão de que uma cidade estava nascendo, senão teríamos pelo menos mais áreas arborizadas. Nas últimas décadas, com a concentração do crescimento da economia na capital, recebemos pessoas de muitos lugares e isso me parece positivo no sentido de fermentação urbana. Esse cenário exige uma oferta de conteúdos culturais e de organização social que pode ter como conseqüência a descoberta da nossa própria metáfora.


Ana Mary – Um pergunta que me ocorreu sem voltas: o fortalezense (no sentido coletivo do termo) não ama Fortaleza? Por que não há, de fato, uma mobilização (ou quantas forem necessárias) em favor da cidade – parece que estamos mergulhados no “complexo de sapo escaldado”, não é?


Flávio Paiva – Não tenho a menor dúvida de que o fortalezense ama Fortaleza. Agora, todos sabemos que a sensação de amor não correspondido inclina-se muitas vezes para a renúncia e até mesmo para o vandalismo. A cidade está muito maltratada. Os descasos da gestão pública nos últimos anos debilitaram significativamente os espaços de convivência social. Muitas mobilizações foram feitas e as coisas não estão piores por conta disso. Se observarmos as ações de socioeconomia solidária no Conjunto Palmeiras e no Bom Jardim; os trabalhos de saúde comunitária no Pirambu e o aumento de mais vagas nas escolas públicas como resultado de mobilizações sociais, vemos que a sociedade não está parada. Claro que faltam campanhas eficientes para retirar as praças do abandono; para aumentar a oferenda de verde e de sombras; para que se construam calçadas decentes e para que as manifestações culturais sejam valorizadas primeiramente nos bairros onde elas acontecem por uma combinação de necessidade e desejo social. A letargia a que me refiro no livro, ao lançar mão da imagem do sapo que colocado em água a uma temperatura ambiente morre se ela for aquecida lentamente, é uma caricatura da desatenção para tantas questões como essas. E tudo retorna ao problema da ausência de reconhecimento do que temos de valores culturais e históricos. Amamos Fortaleza, mas desconhecemos suas qualidades mais arraigadas em nós mesmos. Sem essa liga de pertencimento e de admiração a afetividade se torna vítima da sobrevivência.


Ana Mary – Nesse sentido de mobilização, as organizações não-governamentais abriram uma brecha. Mas, o senhor pondera em Anel de Barbante , “o sentido político das ONGs chegou a um ponto que muitas dessas organizações foram contaminadas com a idéia de que estavam em crise de identidade. E muitas estão”. Que perfil essas organizações têm hoje? Elas também perderam o rumo, ou a personalidade?


Flávio Paiva – As ONGs ensejaram que boa parte da população brasileira criasse, mesmo enfrentando a dureza do regime militar, uma série de alternativas de sustentabilidade política, social, econômica e cultural. Com a conquista da retomada do processo democrático, os governos civis dos presidentes Collor de Mello e Fernando Henrique desenvolveram uma estratégia para diluir a força mobilizadora das organizações não-governamentais, movidos pela importação do conceito norte-americano de Terceiro Setor, no qual as ações da sociedade civil se reduzem a terceirizações das iniciativas governamentais e privadas. Nesse sentido, soltaram dinheiro como quem solta coelhas grávidas no matagal das carências e das filantropias. O enfrentamento a essa situação passou a ser mais difícil do que no período da ditadura, considerando o aspecto difuso com que a questão passou a ser tratada. Com a eleição do presidente Lula, o problema tomou outros rumos e dimensões. Cresceram as expectativas de que com o Partido dos Trabalhadores no poder a linguagem social desenvolvida pelos movimentos da sociedade civil alcançaria destacado espaço de influência nos rumos do Brasil. Acontece que juntamente com Lula e com os seus tradicionais aliados, chegou ao poder uma penca de fisiologistas e imediatistas, inclusive os das chamadas esquerdas. Somado a tudo isso houve um reordenamento de prioridades das agências de cooperação internacional, com a criação da União Européia e outros deslocamentos de interesses geopolíticos mundiais. Existe, portanto, uma perturbação de ordem política nesse campo. O certo é que a sociedade civil organizada precisa de instrumentos de participação além dos partidos políticos e do estado democrático de direito.


Ana Mary – Bom, esta entrevista foi apenas um “aperitivo”. O seu livro provoca discussões noites adentro. Mas não podemos concluir sem tocar (ao menos tocar) em um dos assuntos mais interessantes, envolvendo o imaginário cearense: Padre Cícero, evocado também em Anel de Barbante . O senhor defende que “a vigorosa permanência do Padre Cícero na cultura, na política e na religião da gente nordestina requer novos holofotes”. Para onde o senhor direcionaria essas luzes?


Flávio Paiva – Coloco o tema do Padre Cícero no ambiente da cultura e da cidadania e por isso esse assunto está incluído no livro. É incompreensível o desperdício que fazemos por não procurarmos compreender profundamente o que o fato de ele ter existido causou de ganhos culturais e ebulições políticas para o Ceará e para o Nordeste. Como fenômeno cultural, inspirado na fé e no trabalho, ele atraiu e dispersou a partir do Cariri tudo o que havia de expressão popular em cada um dos mais distantes lugarejos nordestinos e de outras regiões do País. Com relação à nossa gênese política, ele sintetiza as mais variadas vertentes de um campo político estendido do caudilhismo ao cangaço. É uma figura ímpar que guarda muito do que somos. Mas aí entra novamente a questão das barreiras do preconceito que nos separam do nosso DNA social. Para mim, o grande exemplo desse receio é o fato de Fortaleza não ter um espaço no qual as pessoas possam sentir essa espantosa dimensão do significado antropológico do Padre Cícero. Bem feito e destituído de qualquer tacanhice, esse lugar seria uma das mais belas e intensas atrações da cidade, além de funcionar como ponto de propulsão ao turismo no interior, onde tudo aconteceu de verdade.


Flávio, gostaria que você informasse um pouco a história desse livro (como ele surgiu, em quanto tempo ficou pronto, ou algo mais que você quisesse destacar). E me informe também sobre o lançamento (data, horário, local, valor do livro e onde comprar).


Ei, Ana, primeiramente quero lhe dizer que de todas as entrevistas que concedi (em mais de vinte anos) com relação a lançamento de livros/discos etc, esta foi a primeira vez que senti o interesse do repórter em ir fundo no que o autor está realmente querendo dizer. Estou feliz e me sentindo respeitado com as suas perguntas. Obrigado.


Bom, mas indo para os “finalmentes”:


a) A história do livro

A eleição da Luizianne Lins para a Prefeitura de Fortaleza quebrou de uma só vez a preponderância de poder binário exercida há quase duas décadas em Fortaleza e no Ceará por dois grupos políticos. Em Fortaleza, Juraci/Cambraia/Juraci/Juraci e no Estado, Tasso/Ciro/Tasso/Tasso. Comecei a pensar na importância dessa conquista eleitoral da sociedade fortalezense. E isso me levou a pensar também na fragilidade desse processo, devido à forma desgastante como a oposição foi conduzida nas eleições. Por conseguinte, meu pensamento trouxe à minha lembrança o sério problema que temos de, logo que se vislumbra novas perspectivas, esquecer das coisas que nos incomodam e que acreditamos deveriam ser diferentes. Pensei comigo: precisamos amarrar um barbante no dedo para lembrar pelos menos daquilo que consideramos de muita importância. Foi daí que reuni reflexões feitas nos últimos dez anos, sobre assuntos que entendo como de muita importância, e nasceu o “Anel de Barbante” como uma contribuição ao debate nos planos da cultura e da cidadania.

b) Dados sobre o lançamento

O lançamento é uma realização da Fundação de Cultura e Turismo de Fortaleza – Funcet, inaugurando o projeto CONVERSA COM O LEITOR, criado já pela administração do secretário Alexandre Barbalho.
O evento conta também com a colaboração do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – CETRA, entidade que dá suporte ao Projeto Mulheres do Mar, desenvolvido no litoral de Itapipoca por grupos de mulheres que procuram se fortalecer econômica e culturalmente a partir da relação com o mar. São algueiras, bordadeiras etc. Toda a renda dos livros vendidos por ocasião do lançamento será repassada para esse projeto, que é muito interessante, mas ainda não conseguiu o financiamento que merece.

Anel de Barbante – Ensaios de Cultura e Cidadania (Omni Editora, 2005)
Flávio Paiva, jornalista e autor, dentre outros, dos livros “Flor de Maravilha” (Cortez) e “Como Braços de Equilibristas” (Edições UFC)