Diário do Nordeste – Caderno 3, 17/12/2005
Dellano Rios
Flávio Paiva, autor de “Benedito Bacurau”: “A presença fantástica dessa ave para mim simboliza o espírito da infância”
O espírito infantil em forma de pássaro. Esta é a metáfora – verbal, visual e sonora – proposta pelo jornalista Flávio Paiva em seu novo livro, “Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo”. O volume será lançado hoje, no Centro Cultural BNB, com palestras do autor e da compositora e arte-educadora Bia Bedran.
Os adultos são realmente muito engraçados. E os editores adultos conseguem ser ainda mais. Basta uma canção, um quadro, um poema, um texto falar de crianças e colocar algumas cores para rotularem de imediato de infantil e partirem para outra. Curioso que esse é um rótulo que não atinge nem de perto seu público alvo – ou alguém já viu uma criança entrar numa livraria ou uma locadora de vídeos e ir direto a sessão “infantil”? Espertos como são, os pequenos demonstram que seu playground é o mundo inteiro.
Falando de “corujinhas da estrada” (ou bacuraus), brincadeiras, imaginação, criação e poesia, o jornalista e poeta cearense Flávio Paiva lança hoje o livro/CD “Benedito Bacurau: o pássaro que não nasceu de um ovo”. Com esperteza de criança, a obra multimídia se mostra, se não arredio, ao menos escorregadio diante das garras rotulantes do mercado editorial. Produzido com apoio do BNB, o livro é dividido em 11 capítulos, que funcionam de forma independente, ora remetendo ao conto, ora à crônica. “A ligação entre uma e outra é feita pela presença fantástica dessa ave que para mim simboliza o espírito da infância. Essa característica de imaterialidade associada ao mundo infantil certamente provocou a inclinação para sua identificação como
literatura infanto-juvenil”, explica o autor.
Cada parte ganhou uma interpretação visual do artista plástico Estrigas. As aquarelas do veterano captam e traduzem, com desenvoltura o universo rural e onírico onde Paiva trava seus encontros com o pássaro mágico. “As imagens do livro não poderiam sem feitas por outro artista que não o Estrigas, com descrição abstrata e lírica da realidade. Ele foi lendo cada capítulo do livro à noite, dormia com as sensações que tinha assimilado a partir do texto e no dia seguinte, logo pela manhã, pintava a tela relativa àquela parte da aventura bacuralesca que
tinha lido na noite anterior”, descreve Paiva.
Além do trabalho gráfico de Estrigas, o texto de Flávio Paiva é acompanhado de um CD de áudio com a narração das histórias. Mesmo no suporte de áudio, as aparições do bacurau se apoiam em ilustrações – nesse caso, sonoras, por conta do artista multimídia Antônio Nóbrega. Em 11 faixas, o pernambucano, que também comanda a narração, recria os contos-crônicas de Paiva utilizando ilustrações musicais compostas por cancionetas e vinhetas tiradas de composições do autor e seus parceiros musicais.
A opção pela encarnação dupla de seu “Benedito Bacurau” – impresso e áudio – segue o caráter intimista observado no livro. “Gosto de colocar os meus filhos para dormir. Geralmente escolhemos os livros que pretendemos ler no processo de afago do sono. Acontece que às vezes estou bastante cansado e fico cochilando, cochilando e cochilando. Os meninos ficam danados com isso. Então, imaginei que tendo o recurso da literatura recitada, nos dias em que eu tivesse cansado, bastaria colocar o CD, apagar a luz e garantir o nosso aconchego da hora de dormir.”
SERVIÇO: Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo,livro/CD de Flávio Paiva. Obra selecionada pelo Programa BNB de Cultura – Edição 2005. Cortez Editora, 56 páginas, R$ 36,00. Lançamento no Programa Literato, em debate com a participação da compositora e arte-educadora Bia Bedran. Neste sábado, às 17 horas, no Centro Cultural Banco do Nordeste (Rua Floriano Peixoto, 941). Informações: 3464.3177
Fonte
Íntegra da entrevista a Dellano Rios, do Diário do Nordeste
DN – No livro, você conta que a história de Benedito Bacurau foi tirada de uma cançoneta que sua mãe costumava cantar quando você era criança. Em que momento essa lembrança se materializou e se tornou um trabalho literário?
Flávio Paiva – As fontes da lembrança estão em todos nós, com suas impressões e caráter psicológico guardados nos domínios da memória. Contudo, só percebi a imagem do Benedito Bacurau me rondando os pensamentos depois que me tornei pai duas vezes, de 1999 e 2001 para cá. Tanto o cantarolar da minha mãe como a própria figura do bacurau, que chamamos de corujinha de estrada, surgiram naturalmente em minhas recordações desde que passei a colocar os meus filhos para dormir. Algo espontâneo, como respirar. Deu vontade, então, de visitar as regiões imaginárias dessa lembrança feliz e contar livremente o que encontrei na viagem. Com tudo pronto, passei os originais para o professor Rubem Alves e solicitei a ele um texto de apresentação. Pelo tanto que o conteúdo do Benedito Bacurau significa para mim, eu queria submetê-lo ao crivo de alguém que admirasse pela capacidade de dar sentido humano e existencial às coisas mais simples. No dia que ele generosamente me telefonou para dizer que faria o prefácio, disse mais ou menos assim: “São poucos os livros que eu costumo dizer que gostaria de ter escrito. O Benedito Bacurau é um deles”. Chorei de alegria.
DN – Editorialmente, o livro está sendo lançado como literatura infanto-juvenil. “Benedito Bacurau” parece uma coletânea de crônicas, contos memorialistas e, até, teatro que trazem fantasia e um universo onírico habitado por crianças (grandes e pequenas). Isso faz do livro, efetivamente, uma literatura infanto-juvenil?
Flávio Paiva – O Benedito Bacurau é uma história dividida em onze partes conjugadas. A ligação entre uma e outra é feita pela presença fantástica dessa ave que para mim simboliza o espírito da infância. Essa característica de imaterialidade associada ao mundo infantil certamente provocou a inclinação para sua identificação como literatura infanto-juvenil. O Benedito Bacurau é o protagonista de uma aventura de viver narrada como um convite ao leitor para que se debruce sobre si mesmo. Percebido ou não, de uma forma ou de outra, a metáfora do bacurau está em todos nós. Não existem ex-crianças. A infância é o alicerce do adulto. Está contida em todas as idades. Suponho que, tendo acesso a esse livro, as crianças seguirão as proezas do pássaro e compreenderão o que lhes interessar compreender diante da minha visão de mundo manifestada no livro. Lembro que, quando ainda garoto, li “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupèry, passei racionalmente ao largo de muitas das mensagens de humanização enunciadas nessa obra que se tornou célebre em todo o mundo. A minha curiosidade naquele momento preferiu correr no encalço do menininho imaginário, tentando, como ele, saber para que servem os espinhos. Para mim, que morava no sertão, isso tinha uma importância muito grande.
DN – Quais as influências literárias que você reconhece presentes neste trabalho?
Flávio Paiva – Certamente tenho muitas influências de tudo o que li, mas desconfio que a essência desse trabalho vem mesmo é de fontes primárias, de observações e sentimentos colhidos na poética da nossa vida cotidiana.
DN – Porque você optou por lançar o livro em dois suportes – o impresso e o auditivo?
Flávio Paiva – Primeiro, por atenção a uma necessidade pessoal, que acredito deve acontecer com muitos outros pais e mães. Como já disse, gosto de colocar os meus filhos para dormir. Geralmente escolhemos os livros que pretendemos ler no processo de afago do sono. Cada qual escolhe uma história a gosto. Acontece que às vezes estou bastante cansado e fico cochilando, cochilando e cochilando. Salto palavras, trechos inteiros e chego a deixar o livro cair das minhas mãos. Os meninos ficam danados com isso. Então, imaginei que tendo o recurso da literatura recitada, como foi feito no livro e CD do Benedito Bacurau, nos dias em que eu tivesse cansado, bastaria colocar o CD, apagar a luz e garantir o nosso aconchego da hora de dormir. Este é um motivo. Pensei também nas pessoas com insuficiências visuais e numa maneira de contribuir para estimular o prazer da leitura de quem está em processo de alfabetização. Tenho a impressão que, para crianças e adultos que estão aprendendo a ler, contar com o suporte da narração de alguém com o talento e a técnica do Antônio Nóbrega, mais do que um grande estímulo é uma oportunidade ímpar de aprendizagem. A primeira coisa que fiz ao receber o livro pronto foi colocar o CD com a interpretação e as ilustrações musicais feitas pelo Nóbrega, para ter o prazer de acompanhar tão linda participação.
DN – Como surgiu a parceria com Estrigas e com Antônio Nóbrega?
Flávio Paiva – Do mesmo jeito que eu só conseguia identificar o Nóbrega como o ilustrador sonoro desse trabalho, as imagens do livro não poderiam sem feitas por outro artista que não o Estrigas, com descrição abstrata e lírica da realidade. A temperatura das aquarelas que ele fez exclusivamente para o Benedito Bacurau é de uma beleza, de uma sutileza e de uma extensão pictórica excepcional. Só para se ter uma idéia, ele foi lendo cada capítulo do livro à noite, dormia com as sensações que tinha assimilado a partir do texto e no dia seguinte, logo pela manhã, pintava a tela relativa àquela parte da aventura bacuralesca que tinha lido na noite anterior. O Benedito Bacurau é um livro de enunciados, um livro que precisa ser completado pelo leitor, um livro para ler imaginando.
DN – E o convite a Bia Bedran para participar do lançamento do Benedito Bacurau?
Flávio Paiva – Sou um dos muitos admiradores do trabalho dela e da maneira comprometida como ela se coloca na produção de arte para a infância. É uma pessoa por quem, além de admiração, tenho grande carinho. Ela também sabe do que faço e da minha vida. Temos uma confiança mútua bem sedimentada. O fato de ela ter aceitado o meu convite nesse mês de agenda tão complicada, me deixa muito feliz. Tudo que envolve o Benedito Bacurau tem tido a felicidade de contar com o afeto das pessoas envolvidas. O tema proposto pelo Centro Cultural Banco do Nordeste, Literatura Infantil e Música, é muito instigante. Vamos fazer um debate de autores, de amigos, de pessoas que praticam a valorização da vida e do viver.