Livraria Cortez – Notícias

O escritor e jornalista cearense Flávio Paiva lança no Centro Cultural Banco do Nordeste o livro Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo, que traz prefácio do cronista e psicanalista Rubem Alves, ilustrações do artista plástico Estrigas e CD com narração do multiartista pernambucano Antônio Nóbrega

Juliana Girão
Especial para O POVO

bacurau_ilustracaoEm muitas casas, a sala de visita é território dos adultos. Tem um vaso bonito que não pode correr o risco de ser quebrado, o sofá em que o menino não pode colocar o pé. Na casa do jornalista e escritor Flávio Paiva não tem nada disso, não. A começar pela porta de entrada, onde tem afixado um jornalzinho chamado Aventuras, produzido pelos filhos, Lucas, de seis anos, e Artur, de quatro, sobre as viagens em família. A sala de estar tem inúmeros brinquedos, carrinhos, quadros super coloridos do artista Dim, espaço para brincadeiras e mais brincadeiras. E o quarto dos meninos? É pura arte. Tem boneco do Dim, bordado da Nice Firmeza – falta espaço até para as aquarelas do Estrigas que estão para chegar. Na porta, mais arte, só que dos meninos e “pintando o sete” mesmo. O território é definitivamente da duplinha. E não pense que é uma bagunça não, é aconchegante, dá vontade de descobrir, de brincar junto, de despertar o nosso lado bacurau. Bacurau?! Mas o que diabo é isso?!

A história é essa. Assim que o Lucas e o Artur chegaram, o pai coruja começou a cafuçar suas lembranças mais remotas, do tempo da meninice no sertão de Innhamuns. Queria muito contar para os rebentos histórias da sua infância. E, de tanto remexer no baú das memórias, encontrou muitas coisas de afeto junto com uma figura bastante curiosa: o Benedito Bacurau. A prodigiosa corujinha era parte de uma cantiga que a mãe do Flávio cantava para ele ninar. “Benedito Bacurau tá no oco do pau”, dizia a canção. Com as invenções do escritor e sua maneira bem peculiar de ver o mundo, o Benedito Bacurau, de ave, passou a ser personagem principal de um livro, só que em forma de metáfora. “Essa metáfora se expandiu para falar do cotidiano, da dimensão e da grandeza do cotidiano, da beleza das pequenas coisas, para redesenhar significados e para recuperar um pouco os cuidados com o existir”, diz o escritor. Nas onze histórias de Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo – que Flávio lança hoje no Literato, programa de debates do Banco do Nordeste, com a convidada especial Bia Bedran – o bacurau é o espírito brincalhão da infância, que adora festa no Interior, adivinhações, contação de histórias, malabarismos e, acima de tudo, muitas e muitas traquinagens. Aparece sorrateiramente nas mais diversas situações e traz alegria, poesia, vida. Todo mundo, independente da idade, precisa dessa porção bacurau dentro de si. E o livro do Flávio vem justamente arrancar um sorriso e ensinar ou, pelo menos, indicar caminhos para os senhores e senhoras encontrarem o tal bacuraru. É verdade que tem a conta de luz para pagar, a carreira para alavancar, a prospecção de clientes até o final do mês, o trânsito, a falta de tempo. Mas essa “operacionalização da vida”, como classifica Flávio, não pode fazer o bacurau se afastar até um dia desaparecer. “Hoje as pessoas têm uma fixação em gerenciar a vida, que acabam esquecendo do viver”.

E o ‘viver’ inclui todas coisas simples e prazeirosas, como colocar seu filho para dormir ou escutar uma boa música. “Meu texto é um suporte para o bacurau andar, é a correnteza de um riacho. Se o bacurau está aí dentro, você vai acompanhá-lo”, explica. Essa falt de bacurau é uma fábula do livro – talvez a única, porque todas as histórias são da realidade cotidiana -, chamada “Um certo Senhor Escaravelho”. Ela fala sobre um “rola-bosta” misterioso (inseto que come fezes de animais herbívoros) na escola dos Meninos Tristes, onde o bacurau não conseguia chegar. As crianças foram transformadas em esterco e ficariam daquele jeito até que um pai ou mãe se habilitasse a quebrar o encanto com um pouco de atenção e afeto. “Muitas pessoas têm a intenção (de enxergar o bacurau), mas não têm a coragem”, diz Flávio.

Além das histórias do bacurau, o livro – um primor – traz prefácio do cronista e psicanalista Rubem Alves, ilustrações do artista plástico Estrigas e um CD em anexo com narração do texto e cançonetas interpretadas pelo multiartista pernambucano Antônio Nóbrega. Segundo o escritor, a idéia de unir o CD ao trabalho foi a possibilidade de estimular a leitura. “A criança, ao ouvir como é bonito o Antônio Nóbrega ler, vai querer ler também”, avalia. Uma outra estratégia pensada pelo autor foi a possibilidade dos pais cansados poderem deitar com os filhos, apagar as luzes e ouvir o CD. E isso ele diz com conhecimento de causa. “Eu mesmo já dormi em cima de livro lendo para os meus filhos”, conta. “São coisas vividas por qualquer pai”, explica. Além disso, o CD também pode ser uma ferramenta para quem tem algum tipo de deficiência visual. Quanto às ilustrações de Estrigas, Flávio acredita que ele traduziu suas histórias “de uma maneira brilhante, de forma abstrata”. “Estrigas é um pintor abstrato lírico, não desenha as formas com definição e tem tudo a ver com o que eu quis fazer”, diz. Flávio conta que, para fazer as aquarelas, Estrigas lia uma história a cada noite, antes de dormir, e, no dia seguinte, de manhãzinha bem cedo, pintava. “Era uma noite de sono entre a leitura e a pintura”, diz. Era uma noite de sonho entre a leitura e a pintura, eu diria. Sonho com o bacurau, talvez.

Trecho 
“A gente às vezes nem imagina como muitas das coisas mais simples têm importância para toda a nossa vida. Tenho um motivo muito especial para acreditar nisso. Aconteceu comigo. Minha mãe tinha o hábito de me colocar para dormir cantarolando uns versos que falavam de um prodigioso Benedito Bacurau. Era como se para dormir eu precisasse vagar pelo mato, pelas praças e pelo pátio da escola, onde durante o dia eu gostava de brincar com outras crianças. A voz da minha mãe repetia um acalanto mais ou menos assim: “Benedito Bacurau tá no oco do pau”. Era um cantarolar suave, saído de dentro do peito, como uma respiração feita de música. Benedito Bacurau tá no oco do pau. E eu ficava imaginando o Benedito Bacurau com a mãe dele se recolhendo para dormir no tronco de alguma árvore sob o céu estrelado do sertão. Quando eu fechava os olhos para dormir, mas ainda não estava dormindo, eu me via procurando tronco de árvore para ver se encontrava o Benedito Bacurau cochilando no oco do pau. O ninho dele às vezes era meio pelo chão, pelos lajeiros, pelas mais indistintas locas, difícil de achar. Só dava para ver bem direitinho quando eu começava a sonhar. Sonhando eu tinha a noite toda para brincar com o bacurau em aventuras radicais pelas clareiras. Benedito quer caçar. Tem inseto pra danar. Benedito tá cantando. Bacurau quer namorar. Confesso que os bacuraus me metiam um pouco de medo quando brincavam de esconde-esconde sem avisar. Eles se camuflavam tão bem, mas tão bem, que se misturavam com as folhas pelos caminhos e assustavam a gente em vôos inesperados. Achava meio esquisito também quando nas estradas os olhinhos deles se acendiam como duas pequenas tochas de fogo ao serem tocados pela luz dos carros. Eu era menino e ficava encantado com as acrobacias daquelas aves abrindo um bocão sem tamanho quando caçavam insetos para comer. Achava curioso elas terem a cara de coruja, mas caçarem com as garras nem pousarem em pé. Imagine você uma corujinha pousando 
com a barriga no chão como se fosse um aviãozinho misterioso da natureza”.