Portal Cultura Infância, maio/2009
Escrito por Henrique Nunes
O jornalista, escritor e compositor cearense Flávio Paiva lança no domingo 24 de maio de 2009, às 16 horas, no Teatro Brincante (Rua Purpurina, 428 -Vila Madalena – fone: 3816.0575 ) em São Paulo, o livro “Eu Era Assim – infância, cultura e consumismo” , com espetáculo infantil da Banda Dona Zefinha e a participação especial dos músicos paulistanos André Magalhães, Luiz Waack e Paulo Lepetit.
A cantiga de roda ensina: “Quando eu era menino/eu era assim// Quando eu era velhinho/eu era assim/Assim, assim”. Escritor sempre voltado ao universo da cultura popular tradicional e também ao universo infantil, como autor de livros como “Benedito Bacurau” e “Titico achou um anzol” ou de artigos jornalísticos, Flávio Paiva retoma estes ensinamentos na nova cria, um volume de artigos sobre a infância, em dia com aspectos da cultura e do consumismo, publicados entre 1999 e 2008. O lançamento brindará adultos e crianças com músicas infantis dos livros “Flor da Maravilha” e “A Festa do Saci”, de Flávio Paiva, interpretadas pela Banda Dona Zefinha ( www.donazefinha.com.br), com participação de músicos paulistanos.
Henrique Nunes – O livro marca os seus 50 anos enquanto aborda, principalmente, a infância. Que reflexão você faz da sua trajetória tomando estes dois aspectos, a maturidade e a infância?
Flávio Paiva – É na infância que nos preparamos para a maturidade. O ser humano que se constrói nas brincadeiras de criança torna-se um adulto criativo e capaz de alcançar a maturidade sem submissão aos padrões sociais abusivos. Vejo muita gente confundir maturidade e seriedade com sisudez. Na verdade a maturidade é um estágio de equilíbrio que se alcança na vida social e na relação com a natureza. Ser maduro é não pensar que estamos aqui de passagem, mas que somos daqui. Uma pessoa madura é aquela que se mantém lúdica depois de virar adulta. É a universalidade do lúdico que une a vida, da infância à velhice. É por intermédio da brincadeira e do jogo que podemos inverter as leis naturais e a lógica formal do cotidiano, nos momentos inexplicáveis, na aventura e na liberdade de interpretação da vida. Nada é mais humano do que a inquietação de remodelagem do real. A criança, no uso da imaginação, faz experiências que a levam a incorporar saberes, enquanto o adulto, por meio do lúdico, pratica a inversão que o alivia das tensões cotidianas.
Henrique Nunes – Da infância em Independência [sertão do Ceará] à paternidade em Fortaleza, você vem promovendo, inclusive nas páginas do Diário, uma discussão importante sobre temas aparentemente prosaicos. Como você percebe a recepção às suas idéias, aqui e em Independência, uma cidade cujo drama de seca você já registrou e que agora lhe homenageia com a criação de um prêmio de literatura que leva o seu nome?
Flávio Paiva – Tenho as melhores memórias da minha infância em Independência, ajudando meus pais e brincado espontaneamente nas ruas e nos matos. Na última década venho construindo uma memória também maravilhosa do que chamo de paternidade criadora, na relação com os meus filhos. São dois momentos de chamas vivas, atiçadas pelo amor e pela expansão da consciência de que a vida vale a pena. Talvez por isso, como diz o professor Pedrinho Guareschi no prefácio do meu novo livro, eu queira tanto tornar os leitores cúmplices do que escrevo. Como a transdisciplinaridade torna-se cada vez mais necessária no mundo múltiplo que vivemos, a minha contribuição ao debate tem sido recebida com um bom grau de naturalidade pelas áreas que antes se sentiam responsáveis isoladas por determinados temas. Recorro a referências da psicologia, da filosofia, da neurociência, do direito e do que for necessário para expor a minha opinião. E não faço isso com qualquer pretensão de parecer especialista nisso ou naquilo, valho-me apenas da liberdade que os cordelistas têm de fazerem colagens de tempos e acontecimentos distintos para contar histórias muitas vezes aparentemente particulares. Assim, transito sem grandes dificuldades pelos mais variados campos de diálogo. Desde os textos que das páginas do jornal e dos livros entram em movimento pelos portais da internet e pelas bibliografias sugeridas a trabalhos acadêmicos, ao concurso literário que leva o meu nome em Independência, onde nasci, esse alcance diz para mim que tem valido a pena o esforço da reflexão. A expectativa que sempre tenho é que a minha fala seja mais sentida do que entendida, pois assim ela serve de apoio à autonomia do pensamento do leitor.
Henrique Nunes – No livro, você reúne uma série de artigos e ensaios, inclusive publicados em sua coluna semanal no Diário do Nordeste. O que esta mudança de veículo, de mídia, de suporte, representa para a construção do seu ideário? Por outro lado, qual a importância do jornal neste processo?
Flávio Paiva – Os meios, como o próprio nome diz, são meios. Recorro a todos os que estão ao meu alcance para fazer o meu trabalho. Pode ser disco, se o que tenho a dizer está em forma de música; pode ser livro, se a fala está escrita; pode ser vídeo, se o que conta melhor é o audiovisual; e pode ser histórias em quadrinhos, se por meio da arte seqüencial posso comunicar melhor o que tenho a dizer. Muita gente acha que tenho antipatia pelos meios digitais, por não usar telefone celular nem passar o dia todo navegando na internet, subordinado ao senso de que se conectar é mais importante do que se comunicar. Eu adoro os recursos tecnológicos que a inteligência humana desenvolve, mas acho pouco inteligente ficar submisso a eles. Aliás, não gosto de qualquer fundamentalismo. Os fundamentalismos são deformações da grandeza humana. Se critico o fundamentalismo tecnológico é porque vejo em qualquer fundamentalismo essa ameaça de diminuição do humano. Agora, se a minha participação se dá mais no meio jornal impresso é porque percebo no jornal um meio tátil de grande importância para a formação do que acredito, que é a vitória da ética humana. Estar toda quinta-feira nas páginas do Diário, compartilhando reflexões que podem contribuir para ampliar a nossa leitura do mundo, garante um ritmo de produção e de diálogo que imagino bom para mim e para os leitores do jornal.
Henrique Nunes – Você é um cara que tem esperança e, mais que isso, expressa a sua esperança, algo meio raro entre os jornalistas. Quais os limites e os horizontes deste sentimento?
Flávio Paiva – O Millôr Fernandes diz que quem não está confuso é porque está desinformado. Acho que ele tem razão. Mas o que é ser bem-informado? Tem gente que se estressa de tanto se informar. Eu não gosto disso. Faço leituras seletivas. Não dá para querer saber tudo sobre todas as coisas. O mundo é imenso e a quantidade de informações disponíveis e ainda a serem disponibilizadas é algo imensurável. O grande segredo nesses tempos de informação a granel é a indexação. Aqui-acolá dou umas vasculhadas para ver o que está sendo produzido por aí, mas no dia a dia procuro escolher os autores certos, honestos consigo e com o leitor, e os espaços da mídia que nos sugerem confiança. Como jornalista, tento não me deixar atarantar pela proximidade com a notícia. É da natureza da nossa profissão mostrar o que a sociedade está fazendo com ela mesma; de bom e de ruim. Mas tem algo mais, que é o lado do compromisso docente da imprensa na atualidade. Assim como várias outras instâncias de formação de opinião, o jornalismo deveria cuidar mais para que o pessimismo do profissional que está de cara com os fatos, não contamine os seus leitores, seus ouvintes, seus telespectadores, muitas vezes dando a entender que a exceção virou a regra.
Henrique Nunes – Você admira Monteiro Lobato e Saci, abordados respectivamente nos capítulos “Pedagogia Lobatiana” e “A perna invisível da cultura”. Fale sucintamente destes dois personagens tão desfigurados pelo imaginário popular há algumas décadas.
Flávio Paiva – Sempre tive uma admiração muito grande por Monteiro Lobato. O meu primeiro livro foi lançado em 1982, em um seminário que comemorava o centenário de nascimento desse genial escritor e empreendedor, realizado no auditório do Hotel Esplanada, na avenida Beira-Mar. Naquela noite, em que meu pequeno livro de poemas e crônicas [A Face Viva da Ilusão] foi apresentado pelo meu padrinho Vasco Damasceno Weyne, comecei a desconfiar da existência de uma pedagogia que não era só dos pedagogos. Senti-me naquele momento sendo educado e educando; recebendo um impulso a continuar acreditando na literatura e oferecendo sinais de que, era possível transformar sonhos em realidade. Quando fiz a seleção de textos para o livro “Eu Era Assim”, procurei reunir em um dos capítulos exemplos dessa pedagogia empírica, dessa pedagogia comunitária, dessa pedagogia do afeto e das relações que a sociedade pratica sem muitas vezes ter ciência do seu valor. E tenho a satisfação plena de poder incluir nesse bloco de educadores o meu pai e a minha mãe. A valorização do Saci nesse contexto vem do meu aprendizado como beneficiário dessa pedagogia marginal. Não sou dos que vivem tentando descobrir para onde vamos depois da morte ou se vamos mesmo ou não para algum lugar. Gosto da vida orgânica, onde o sagrado se expressa na cultura com todos os seus encantamentos. E é nesse campo de fertilidade que vejo o Saci em ressignificação. Estou esperançoso que a humanidade, com sua comprovada capacidade de superar brilhantemente a seleção natural e de recriar sentidos, não vai se destruir a toa. Estamos vivendo uma crise de modelo civilizatório e temos a rara oportunidade de repensar o que temos feito com nós mesmos e com o planeta do qual somos parte.
Henrique Nunes – Você é um artista plural, para usar um termo que você incentivou bastante há uma década. A formação generalista do comunicador incentivou esta visão? Como você procura dosar as diversas linguagens na sua criação?
Flávio Paiva – O mundo é plural e diverso. E gosto de me sentir do mundo. Esta é uma das nossas maiores riquezas. Quando me pronuncio contra as hegemonias e contras a massificação é porque acho isso uma estupidez das sociedades pequenas. Quando penso nisso acho até engraçado, porque por esse viés a gente começa a observar que as nações que se dizem civilizadas e desenvolvidas, que insistem em dominar o mundo pela guerra e pelo poder econômico, não passam de nações inseguras diante da multiplicidade cultural e dos modos de ver o mundo que os outros desenvolveram. Esse medo do outro fez com que essas nações apostassem nas violências que levaram o mundo a exaustão. Penso nisso com uma curiosidade irônica que me leva a tratar em meus escritos do egoísmo social e de tudo o que isso significa diante do tanto que temos a compartilhar. Pensando bem é basicamente sobre essas contradições que escrevo. Eu diria que esse é o meu tema, ou melhor, que é em torno dessa antinomia que orbitam as ilustrações que colho no cotidiano para, por meio delas, me expressar. Como saio recorrendo a tudo o que posso para tentar dizer alguma coisa, acaba parecendo que falo sobre muitos assuntos. Certamente o meu trânsito por variados espaços que o trabalho em comunicação me ajuda a olhar, facilita que eu cate exemplos diversos e plurais para utilização na minha produção literária e jornalística.
Henrique Nunes – Voltando ao livro, comente a relação entre infância e consumismo, algo cujo efeito vem sendo tão avassalador na sociedade brasileira.
Flávio Paiva – Podemos chamar esse fenômeno de mercantilização da infância. Por conta dos abusos dessa exploração comercial da inocência, que promove o distanciamento do brincar criativo e o estresse nas relações afetivas e educacionais, o mundo está cheio de crianças com distúrbios alimentares, puberdade precoce, transtorno de sono, sem sentido de pertencimento, enfim, crianças abaladas em sua saúde física, psicológica e emocional, com forte intolerância às regras de convivência social. Felizmente a sociedade está reagindo e começando a interferir nessa bagunça da racionalidade da ambição. Em vários países, e o Brasil está entre eles, vem se fortalecendo um contrapoder social com resultados positivos de conquistas que barram ou pelo menos reduzem a intrusão da força sedutora dos pedófilos de mercado.
Henrique Nunes – No último capítulo e no “posfácio”, você fala da necessidade de revisitar o imaginário infantil através da oralidade e do ato de brincar. Como estas tradições podem conviver com as influências da mídia e da globalização da informação já durante a própria infância?
Flávio Paiva – O que está em questão é como combinar a cultura da infância com o novo lugar social a ser ocupado por meninas e meninos, diante das influências das muitas comunidades físicas e virtuais que educam e deseducam. Uma coisa é certa: não devemos cair armadilha de querer evitar que as crianças vivam o seu tempo. Quando se fala em garantir o espaço e o tempo da brincadeira, com o intuito de preservar a fonte de criatividade do adulto, não é uma volta ao passado, muito pelo contrário, é um passo à frente de uma realidade perversa que tem coisificado a infância, impedindo o seu exercício de afirmação diante da vida e da natureza. Temos uma visão muito territorial de cultura e por causa dessa limitação fica difícil perceber que a cultura da infância se desenvolve pela brincadeira, na zona do lúdico, a mesma área imaginária por onde trafega o sentido de jogo do adulto, mas com a diferença de que, nela, a criança está permanentemente testando hipóteses, com as quais cria as bases para o nascimento do adulto que ela se tornará.
Henrique Nunes – Na capa do livro, uma ilustração de Geraldo Jesuíno promove o encontro entre a infância e a terceira idade, abordado em artigos como os dedicados aos seus pais e sugerido desde o título do livro, pela cantiga popular. Que terceira ou quarta idades poderemos colher em futuro que não semeia nem os ensinamentos de Lobato nem os do Saci?
Flávio Paiva – O Jesuíno foi muito feliz nessa ilustração e na capa como um todo. E não se poderia esperar nada diferente, considerando o artista caprichoso que conhecemos. Ele pôs a bengala e a varinha de empurrar aro no mesmo nível de ludicidade, criando um ponto dinâmico de encontro entre o velho e o novo. É muito bom ter uma capa e um título que traduzem bem a intenção do livro, que é revolver a autenticidade do humano na sua organicidade, diante das regras de um modelo calcado no instantâneo e no descartável. A vida precisa ser preenchida de vida e não de morte. A morte faz parte da vida e não o contrário. Precisamos de vínculos afetivos capazes de romper com a ditadura da funcionalidade, capazes de quebrar o imobilismo, por meio do diálogo da razão com a intuição, da cultura com a natureza e da objetividade com a imaginação. Para existir futuro precisamos deixar existir a infância. É condição indispensável. A expectativa de vida aumenta e com ela o poder de destruição do consumismo. Vivemos uma guerra de sentidos e uma crise de significados, na qual a cultura tem o papel de construção do sentido de destino e de mediação entre o eterno e o temporal.
SERVIÇO:
Título: Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo
Autor: Flávio Paiva
Editora: Cortez (São Paulo)
Formato: 16×23 cm
Nº de páginas: 336 págs. ISBN: 978-85-249-1480-5
Preço de referência: R$ 42,00 LANÇAMENTO EM SÃO PAULO
Data: 24 de maio de 2009 (domingo)
Hora: 16 horas
Local: Teatro Brincante
Endereço: Rua Purpurina, 428 – Vila Madalena
Fone: (11) 3816-0575