Diário do Nordeste, Caderno 3, 27/04/2005
O jornalista Flávio Paiva lança nesta quarta-feira, dia 27, o livro “Anel de Barbante – Ensaios de Cultura e Cidadania”, inaugurando o projeto “Conversa com o Leitor”, da Fundação de Cultura e Turismo de Fortaleza – Funceti. No novo trabalho, o autor, que é cronista deste Caderno 3 , faz um recorte dos últimos dez anos com enfoques sobre a cidade de Fortaleza, o litoral do Ceará, a ação política das organizações não-governamentais e a ausência de conexão que o preconceito gera na relação cultural entre a capital e o interior, a partir do exemplo da discriminação feita ao acervo do patrimônio imaterial do Padre Cícero Romão. Nesta entrevista, ele conta como, entre a prudência dos analistas e a liberdade dos pacientes desesperados, procura por meio da palavra escrita superar as tentações do esquecimento e encontrar no equilíbrio dinâmico do cotidiano alguma chave para o jogo dos valores locais e universais.
Caderno 3 – Na página de abertura do seu livro você reproduz uma citação do compositor Chico Buarque na qual ele desabafa que tem tido muito pouco interesse em se manifestar porque, quando chega a hora de uma discussão mais séria, opiniões como a dele “soam quase como um escárnio, coisa de poeta”. Como você se localiza nesse contexto?
Flávio Paiva – Só mesmo um artista notável como o Chico Buarque para nos alertar tão sutilmente da grande síndrome dos tempos atuais que é o desprezo corrente à experiência e à inteligência que se traduz em sabedoria. Vivemos sob efeito das estatísticas, das pesquisas, da catástrofe dos números alarmantes a nos ameaçar em nossa pequenez de angustiados sobreviventes. Diria que nesse contexto, tomando a liberdade de tentar entender o sentimento revelado por ele nessa frase, me sinto atingido pela vitória da esperteza na qual o que mais vale é o pronunciamento das superficialidades. Mas o que parece desanimador é um quadro abstrato de oportunidades pintado pela própria natureza humana. Se nos deixamos levar pelas aparências, elas nos farão pensar que não passamos de uma composição grotesca de figuras inanimadas sobre a mesa da realidade. Fica confuso mesmo. Há horas em que nos sentimos, como no conto de João e Maria, entrando em uma imensa floresta para ser largados ao apetite das feras. O que podemos fazer numa situação dessas é tentar, como fez João na historinha eternizada pelos irmãos Grimm, marcar o caminho com pedrinhas brancas. Pode servir para retornarmos a algum lugar ou para indicar aos que vierem depois de nós por onde nos perdemos. Óbvio que nem sempre conseguiremos pedrinhas brancas para fazer a nossa orientação à luz do luar. Muitas vezes, como ilustra o conto popular, dispomos apenas do próprio pão que temos para nos alimentar, como recurso para marcar esses caminhos. Só que toda floresta está cheia de bichinhos que muitas vezes, inocentemente, apenas buscam migalhas para matar a fome e, com isso, contribuem para o desaparecimento dessas marcações.
Caderno 3 – É, então, dessa necessidade de marcar caminho, de registrar o que você encontra de importante no seu percurso pela “floresta da realidade” que você fez o livro “Anel de Barbante”?
Flávio Paiva – Exatamente. A simbologia do barbante amarrado ao dedo nos remete a não deixar escapar da memória algo que não devemos esquecer. Os escritos pesponteados neste trabalho tratam das abundâncias e insuficiências de Fortaleza, uma cidade na qual está virando moda uma minoria se locomover de helicóptero, enquanto a grande maioria não tem sequer calçadas para andar. Costuram também uma série de observações sobre a realidade dos povos da zona costeira que enfrentam toda sorte de perseguição como se fossem elementos dispensáveis nos projetos de exploração da nossa riqueza litorânea. Tecem ainda ponderações a respeito do desmonte das organizações governamentais com o avanço do chamado Terceiro Setor e mescla a tudo isso estampas relativas a um certo desprezo que temos com a nossa cultura popular.
Caderno 3 – O livro “Anel de Barbante” apresenta semelhanças com outro livro seu, o “Mobilização Social no Ceará”. Pode-se ler isso como uma intenção de continuidade?
Flávio Paiva – A abordagem do “Mobilização” foi toda feita a partir das movimentações sociais e suas influências na vida política do Ceará. O “Anel de Barbante” transita mais por transformações íntimas em sua inquietação esperançosa. Noto em seu conteúdo um incômodo diante da realidade, diante da forma como se comporta o nosso incipiente estado de cidadania. Fico por vezes sem saber se olho as pessoas modificando o lugar onde moram ou se olho as modificações do lugar mudando as pessoas. O pior é que não tenho como não me incluir como personagem desse cenário de multiplicidade de versões, de resistências e aspirações em circunstâncias conflitantes entre o crescimento concentrador e as formas necessárias de desenvolvimento.
Caderno 3 – Por isso você procura encontrar o sujeito social pelos caminhos da memória?
Flávio Paiva – Os nossos caminhos da memória são como os caminhos do poeta espanhol Antônio Machado, vão se fazendo ao andar. Uso muitas fontes primárias. Aliás, esses escritos não passam de fontes primárias. É uma situação curiosa a que experimentamos na atualidade. Por um lado, recebemos um sem-número de informações a cada instante e, por outro lado, temos constantemente a sensação de estarmos desabastecidos de informações. Não temos sabido lidar bem com as conquistas tecnológicas e das comunicações. A pulverização de notícias espetaculares com as quais somos bombardeados pelas agências que controlam o fluxo das informações que circulam globalmente, parece diminuir a importância do que está à nossa volta. O Conclave que elegeu o novo Papa; a nova chacina de deserdados no Rio de Janeiro; o Tsunami na Ásia; o anticlímax político do deputado Severino Cavalcanti e as conseqüências trágicas das ações neoimperialistas dos Estados Unidos são tão eloqüentes em suas escalas midiáticas que os nossos problemas locais parecem perder o sentido de aparecer no gráfico das nossas atenções.
Caderno 3 – Mas, por serem sistêmicos, esses grandes acontecimentos acabam interferindo no cotidiano de todos nós.
Flávio Paiva – Concordo. São fatos de repercussão internacional. O que estou querendo dizer é que ainda não aprendemos a calibrar essas dimensões em nossas vidas, dando a elas o sentido de complementaridade que precisamos dar em busca do equilíbrio social, cultural e ambiental. Claro que é importante saber das novas políticas do Vaticano, mas para nós cearenses é fundamental estarmos atentos também a fatos como os que, por exemplo, envolvem as ameaças e conflitos existentes entre o pároco e a comunidade da praia de Mundaú. Quer dizer, nem tanto ao Papa, nem tanto ao padre. A ação pública de ambos nos interessa porque, cada qual com a sua dimensão, compõe direta ou indiretamente as variáveis do nosso cotidiano.
Caderno 3 – Você entende que o tratamento deste tipo de questão em livro é uma forma de combate abraçado pelo autor?
Flávio Paiva – As coisas que a gente sente com intensidade, quer por motivos estéticos, políticos, religiosos ou humanísticos se revelam despertadoras de impulsos combativos. O livro nos permite organizar o que estamos sentindo e oferecer ao leitor. Talvez o maior embate que temos travado na atualidade seja o de sentir que se está sentindo algo. Traduzir esses sentimentos pelo código das palavras é realmente uma batalha complexa. Conseguir com que o leitor abra espaço na sua agenda de preocupações para identificar que também sente algo assemelhado é a vitória de qualquer autor. Quando escrevo não faço nada mais do que produzir ênfase. O que cada um pode fazer com isso está fora do alcance da obra em si, já passa a fazer parte da história de quem lê.
Serviço
Lançamento do livro “Anel de Barbante – Ensaios de Cultura e Cidadania” (160 p. Omni Editora, 2005), do jornalista Flávio Paiva, dia 27 de abril (quarta-feira), às 19:30, no Mercado dos Pinhões. Prefácio de José Borzzachiello da Silva. Na ocasião, o livro será vendido por R$ 20,00 e toda a venda será destinada ao fortalecimento do Projeto Mulheres do Mar desenvolvido no litoral leste cearense com suporte do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – CETRA.