Itu.com.br, 22/12/2005
Joyce Barsotti Cunha
Psicóloga e pedagoga, atua como Coordenadora Pedagógica do Colégio Integrado Monteiro Lobato desde 1997
“… Tenho horror dessas educações que preparam para a vida. Vejam que preparar para a vida é pressupor que a vida vai começar daqui a dez, vinte anos, quando terminar a faculdade… A vida é hoje, hoje! O momento de alegria e felicidade é hoje. Se a escola não for um lugar de alegria e felicidade, ela merece ser destruída.
… Cada escola tem que ser gerada e parida por aqueles que vão viver na escola, e isso é um período sem fim…
… Acho importante que uma escola seja construída e mantida da mesma forma que se constrói e se mantém um jardim. É preciso que todos trabalhem… que cada um plante a sua planta…
… Na escola a gente vai colocando ‘as coisas’ que são objeto de amor, e aquilo que é objeto de amor eu não destruo, porque é parte de mim.
Quando o espaço da escola oferece essa possibilidade, então existe uma relação afetiva, carinhosa, e não é preciso tomar conta porque todo mundo se torna tomador de conta desse jardim.”
RUBEM ALVES
Final de ano é época de fazer uma retrospectiva sobre as últimas experiências vividas, pensar nas milhares de novas ‘coisas’ que pretendemos para o ano seguinte e buscar novas soluções para conflitos que nos acompanham às vezes há mais tempo do que gostaríamos.
É tempo de idealizarmos o ano que se aproxima e apostarmos todas as nossas fichas em como teremos dias mais felizes, mais tempo para passar com nossos filhos e, se sobrar um dinheirinho (nessa época temos praticamente certeza de que teremos essa sorte), fazer a viagem dos nossos sonhos.
É também tempo de planejamento, de organizar as atividades para o ano seguinte e de buscar novas informações, ou mesmo informações antigas, mas que estavam escondidinhas lá no fundo da nossa memória.
Divagações à parte, encontro-me hoje num momento de ‘busca’. Encontrei essa “mensagem” (creio que posso chamá-la assim) do Rubem Alves num dos muitos momentos de estudo, nos quais costumo vasculhar, nas mais diversas fontes, palavras que vem ao encontro dos meus anseios para os novos dias que virão.
Apesar de já conhecer as palavras, elas me fizeram novamente pensar no sentido que damos à palavra “educar”. Acredito que educar seja uma tarefa muito maior do que simplesmente orientar ou mostrar caminhos. Educar é sentir-se também aluno, é ensinar e aprender, é possibilitar não só a transformação do conhecimento como também da consciência (aliás, esse é o nosso maior desafio).
Educar é, acima de tudo, um ato de transformação, criação e invenção. Por isso, podemos afirmar que não há fórmulas definitivas e acabadas no ato de educar.
A transformação é o pressuposto fundamental de um processo educativo. Mesmo porque os seres humanos não são seres estáticos, mas seres ricos, complexos e inacabados — ainda bem que inacabados…
Como dizia Guimarães Rosa: “O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, não foram terminadas, mas elas vão sempre mudando…”
Na minha última ‘busca’ do ano (agora vou me presentear com uns dias para relaxar — afinal, eu também preciso de alguns momentos para pensar em nada), encontrei um texto delicioso que fala sobre a ‘quase’ desconhecida Pedagogia Lobatiana, e por isso tomei a liberdade de partilhá-lo.
Quando iniciamos nossos trabalhos aqui no Colégio e optamos por usar o nome “Monteiro Lobato”, sabíamos da responsabilidade e da riqueza cultural que permearia o nosso dia-a-dia. Desde então, 16 anos se passaram, e Monteiro Lobato continua a me surpreender, assim como as muitas visões sobre a sua obra.
Espero que todos possam também se deliciar com as palavras do Flávio Paiva e com as inúmeras possibilidades de trabalho que elas oferecem.
Desejo a todos um ótimo final de ano, e muita luz nesse novo ano que se inicia, para que muitos novos horizontes possam ser descobertos.
Lobato: a fonte brasileira do construtivismo
Flávio Paiva [*]
Nas últimas décadas tem sido intensa a proliferação de escolas e mais escolas declarando-se construtivistas. Muitas delas, entretanto, sequer conseguem distinguir o que é filosofia educacional e o que é método de ensino. Enquanto isso, os esforços de compreensão da teoria construtivista passam ao largo da obra infantil de Monteiro Lobato, que é uma sofisticada antecipação prática da educação destituída de verdades prontas.
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O que mais me chama a atenção na questão do construtivismo é que o seu maior exemplo prático, que é a obra infantil de Monteiro Lobato (1882 — 1948), tem base na intuição de uma utopia política e literária, enquanto a sua base teórica se origina nos incansáveis estudos de Jean Piaget (1896 — 1980) nos campos da biologia e da psicologia. Lobato criou e levou a efeito o Sítio do Picapau Amarelo com a intenção deliberada de motivar as crianças brasileiras a construírem um país que pudesse aflorar e crescer da própria curiosidade e da inventividade da infância. Piaget abriu caminhos no campo da inteligência infantil, investigando, por razões clínicas, o processo de raciocínio das crianças a partir das suas interações sensório-motoras com o ambiente. A essas duas matrizes, uma prática e outra teórica, some-se toda uma evolução de linhas de discussão e de experiências exitosas, referentes à forma de alfabetizar e ao respeito ao pensamento das crianças, e pode-se dizer que o construtivismo, mesmo ainda embaçado em sua compreensão geral, já conquistou lugar de destaque na espiral da educação.
Mas essa história vem de longe. No ano em que Piaget nasceu, Lobato, então com 14 anos, estava deixando Taubaté para ir estudar em São Paulo. O escritor brasileiro tinha passado a infância descobrindo o mundo através de brinquedos feitos de sabugo de milho, de casca de melancia, carrinho de lata e em tudo que se fazia necessário para inventar a diversão em uma cidade do interior. O psicólogo suíço poucos anos depois começava então a se divertir com a sua atração especial por moluscos, pássaros, enfim, por temas zoológicos.
O ano de 1921 é uma data que deveria ser adotada pelos adeptos do construtivismo como o marco fundador dessa filosofia. Naquele ano, Lobato, que já vinha despertando para a riqueza das suas lembranças de menino interiorano e tinha lançado a primeira versão do livro “A menina do narizinho arrebitado”, inicia sistematicamente a sua dedicação à literatura infantil, publicando livros em série, dentro de uma certa metodologia formada por elos de intuição. Foi também o ano em que Piaget começou suas observações de crianças brincando e em que passou a registrar detalhadamente o que elas diziam e faziam, para poder, assim, compreender o processo de raciocínio na infância. Ao fazer a caracterização da constituição das estruturas da inteligência ele foi construindo explicações de como algo menor é capaz de produzir algo maior, em estágios de desenvolvimento.
A publicação das histórias do Sítio do Picapau Amarelo ensejou aos leitores brasileiros um espaço de múltiplas possibilidades constituído de sofisticada riqueza literária e educativa, em seu aspecto mais essencial de acolhimento aos assuntos de interesse da infância. É, portanto, quase sem sentido deixar a obra de Monteiro Lobato fora das discussões sobre o construtivismo, como tem sido feito até agora. Perde-se com essa cegueira uma grande oportunidade de saber como é tudo isso em ação. Lobato organizou em quatro personas-chave o campo fértil para o exercício da imaginação no Sítio: Pedrinho e Narizinho, na condição de crianças abertas a tudo e sempre cheias de curiosidades; a Dona Benta, na representação do adulto disposto a aceitar e a motivar as invencionices das crianças; a Tia Nastácia, na posição de síntese da cultura popular; e a Emília que, sendo uma boneca, ficou com a liberdade de desconstruir a lógica das coisas sem dar muitas satisfações.
Na dinâmica do Sítio, Lobato dispôs as competências dessas personas a serviço do desenvolvimento infantil e em uma plataforma estética capaz de extrapolar as possibilidades dos cinco sentidos, gerando, conseqüentemente, uma construção sucessiva de novidades na formação das crianças, o que traduz objetivamente o modelo construtivista teorizado por Piaget. Ao passo que Piaget levantava dados para a montagem de seu eixo teórico, difundido amplamente a partir da publicação, em 1923, do livro “A linguagem e o pensamento da criança”. Lobato colocava em situação de exercício o que se pode ter de inteligência antecedendo à aquisição da linguagem e elevando a ação ao plano elementar da lógica. Piaget esmiuçava, por razões clínicas, hipóteses para a gênese das operações lógicas, do raciocínio casual e da apreciação moral.
Em sua obra infantil, Lobato, diferentemente de Piaget, não se moveu no sentido de procurar entender o que é conhecimento e como se dá o fenômeno da evolução qualitativa do saber. Ele tinha urgência em interferir na formação de um Brasil ideal. Por meio da valorização da infância sonhava em preparar o seu país para o futuro. Ao invés de incorrer na investigação científica, assumiu o risco de crer na intuição e traçou, em parceria com os seus personagens, uma filosofia educacional construtivista. A própria estrutura do Sítio do Picapau Amarelo foi toda concebida como ambiente de integração no qual tudo cabe e tudo se desenvolve com o combustível da curiosidade e da imaginação.
No cotidiano do Sítio há sempre um mundo novo e desconhecido a ser explorado, quer em caçadas de saci na mata fechada do Capoeirão dos Tucanos ou nos labirintos do Minotauro em distantes aventuras pela Grécia antiga. A evolução humana, as criaturas fantásticas, a ciência, a matemática, a física, a história, a geografia e a paz, passaram a contar com um segredo especial de brasilidade naquele lugar imaginário, de onde foi possível, inclusive, chegar à lua bem antes dos astronautas e antecipar a descoberta de petróleo no Brasil. A obra infantil de Lobato é um dínamo a acender os faróis da necessidade de tratar a criança em suas potencialidades de reflexão e criação de idéias, conduzindo o conhecimento, estágio após estágio, num crescente de complementaridades e interdependências.
Um dos momentos mais brilhantes de Piaget foi, na década de 1930, quando ele trabalhou as noções de quantidade e número. Na década seguinte, provavelmente sem saber dessa façanha, Lobato lançou a “Aritmética da Emília”, cheia de recursos teatrais e dos encantos da magia circense. Nessa historinha, os Algarismos Arábicos entram no picadeiro como um grupo de malabaristas puxados pelo número 1. O Visconde de Sabugosa explica que o número 1 é o pai de todos porque se não fosse ele os outros não existiriam: “Sem 1, por exemplo, não pode haver o 2, que é 1 mais 1; nem 3, que é 1 mais 1 mais 1” e segue assim até a Emília deduzir que os algarismos são “feixes de Uns”. E Lobato aproveita a irreverência da boneca de pano para avançar da noção de número para quantidade: “Os algarismos são varas. O 1 é uma varinha de pé. O 2 é um feixe de duas varinhas; o 3 é um feixe de 3 varinhas” e assim por diante.
Depois da apresentação dos números entra em cena a Dona Unidade e o Visconde esclarece a razão de, sem ela, não existir qualquer quantidade: “Quando alguém diz, cinco laranjas, está se referindo a uma quantidade de laranjas; e nessa quantidade uma laranja é a unidade”. Na sua vez de se apresentar, a própria Quantidade explica que serve “para indicar uma porção de qualquer coisa que possa ser contada, pesada ou medida. Se alguém pergunta que quantidade de gente há neste circo, eu conto as pessoas e respondo que há oito. Oito pessoas é uma Quantidade”. Foi nesse clima que Lobato desenvolveu a aplicação do construtivismo antes mesmo dele existir.
(*) Flávio Paiva é jornalista e autor, dentre outros, dos livros “Como Braços de Equilibristas”(Edições UFC) e “Flor de Maravilha” (Cortez Editora).