Diário do Nordeste, Fortaleza, 21/7/2007
Caderno 3 – Ponto de Vista

EUGÊNIO LEANDRO* 

Nos anos 80, o que nos vinha era um embate com a ditadura da opinião, já que a opressão arrefecia. Não havia muitas brechas para se respirar. Tentávamos baixar a crista do forte opositor, que ainda persiste, a arte regida pelo mercado, satélite de mão única a mandar suas mensagens exclusivas, na figuração do maestro Medaglia. Quando a fórmula dá certo, é explorada até que renda um último níquel, manipulando incautos. Quem se negava a falar tal linguagem, simplesmente não existia. 

Se a gente quisesse um rebatedor em Fortaleza, tínhamos que construí-lo. Para isso, tínhamos um laboratório onde todos podiam experimentar: o nosso Benfica, arena de luta e lazer, com a Praia de Iracema de regalo. Quatro anos, da Faculdade de Direito para a cantina das Ciências Sociais, cearense como ninguém, a reverberar canteiros de Fagner, berros de Ednardo, o almoço do Belchior, no chão sagrado do Rodger. O Trovador de Evaldo Gouveia a desejar novas referências, num radinho lá da pê erreénove. E a gente se remexendo pra dizer algo diferente. 

Daí, vinha a pomba sangrada no palco, nas mãos de Eduardo Braga; o poema? Deus é Ateu: Ele não acredita que eu existo!, de um paraibano surpreendendo a platéia; a Libelu do Fernandinho Costa, a Carne Seca do Parahyba; os duelos de Nonatin, Sandro Og, Silvino, pra ver quem viajava mais; a vigília na Segurança Pública, soltando os presos da Quadra do Céu, outra comissão indo acordar o Reitor às três da madrugada, para que intercedesse; Credimus, O Saco, Massafeira, Siriará, um jornal do Dorian Sampaio, outro do Neno, Sem Regras do Flávio Paiva, T. Matos, Falcão, Jorge Pieiro, Nelson Augusto; revista Pássaro, Porão, Comboio, Laert, Wanderlou, Gildemar, a viagem do Franzé Rodrigues; macacos na gráfica da UFC; corais da Izaíra; fotos do Bill Cartaxo; eleição de Maria Luiza, tomada da Reitoria, mais de 20 anos antes da USP, por outros motivos, note-se; Caravana Universitária, atos-shows dos DCEs, CAs e CUTs. Não era só música, era um tudo. 

Quando me formei, me vi tonto, como se me mandassem procurar outra calçada. Mas aí, a gente estava antenado na Filosofia da Mirtes, na Sociologia do Magno, nos rompantes do Eusélio, na calma do Moreira Campos, na franqueza do prof. Raimundo Holanda, na paciência do zangado Frazão, tantos Mestres da nossa UFC, e eu, com A Coragem de Criar, do Rollo May, debaixo do braço. 

Tantas as demandas naquele Brasilzinho cinzento que era necessário, primeiro, a organização popular. Daí o mundo de bairros e favelas a criar seus clubes, associações e sindicatos, junto à atuação estudantil. Nessa hora, abriu-se um caminho para a produção cultural, pois tínhamos um público expressivo e a força dos segundos cadernos. Nos bares, pela revolução do Pessoal do Ceará e pela pressão dos novos, foi abolida a radiola para dar lugar ao som ao vivo, com a gente cantando repertório próprio. Todos ainda sem disco. Mas havia hits como ´Pretexto´, do Álcio e do Pena, ´Canoeiro´, do Parahyba Kid e Inês Bang-Bang… Com a chegada da Universitária FM, completou-se a espinha para dar sustento à produção. Até hoje, são essas cabeças que nos ajudam a segurar essa pesada caneta que escreve a história. 

Fizemos associações, intercâmbios, mobilização em torno do Sindicato dos Músicos, de 1940, dos mais antigos do Brasil. Mas continua inerte. Corremos o Brasil inteiro, e a Globo, quando quis, nos encontrou. Foi buscar Abidoral Jamacaru no quintal dele, Adauto Oliveira, Pingo, Luiz Sérgio ´Pato Rouco´… 

O boom de discos dos anos 80/90 deu-se da forma mais comunitária e solidária possível. É um expressivo exemplo de agregação do cearense, do fortalezense. Apesar das dificuldades, todos os nomes dessa geração lançaram seus discos, ruins ou bons. Nas conversas, a idéia era gravar, lançar muitos títulos que enchessem as mesas das rádios, que era o nosso calcanharzinho. Nos diziam quanto a música era boa, mas não queriam correr o risco do ouvinte mudar o ´dial´. Queriam ver se a gente tinha bala na agulha. Apesar da ebulição, a gente não tinha muita articulação. 

Por outro lado, na Verdes Mares, com o Mário, o Mansueto Barbosa, os Norões, era regra: ´Traga o VT produzido, que a gente põe no ar´. Quantos comerciais nossos assistimos pela mão deles! Nos segundos cadernos, o mesmo clima, a coisa do solidário, de apostar na turma, pra ver qual é, que ainda hoje persiste, quando se abre o jornal e nos deparamos com página inteira de um Quarto das Cinzas, por exemplo. Isso gerou consistência, de Fortaleza como centro irradiador, estimulando a vinda da fábrica de CDs para o Ceará, pelas articulações do Flávio Paiva e do produtor Cláudio Lucci. 

Então vêm os canais de TV, que hoje são tantos, que inventam artista pra encher a grade local. Alguns ainda insistindo naquele dito do Fausto Nilo sobre os carros de som em último volume, do cara que amarra o cavalo, fica a sujar a rua, enquanto faz a festa no salão. O que acho? Se a nossa geração deve mea culpa, fazêmo-la sem problema. Mas Fortaleza necessita de novo caldo de senso e clareza. Talvez num susto, num terremoto, porque vítimas nós sempre tivemos. Para não fazer sofrer tanto os novos que querem dizer. Para quem vê o mundo, na implosão das ´majors´, inúmeros alternativos se reestruturam, dizendo que estamos prontos para os próximos embates.