|MÚSICA| Completando 25 anos, o disco “Terra do Nunca” reuniu artistas de diferentes partes do Brasil para falar sobre um país que insiste em não crescer

MARCOS SAMPAIO
marcossampaio@opovo.com.br

Numas das passagens mais famosas das “Viagens de Gulliver”, o aventureiro inglês chega a Lilipute, cidade habitada por seres minúsculos. Afeitos a longas discussões sobre questões inócuas, os liliputianos até iniciam uma convivência pacífica com o visitante, mas se sentem receosos com seu imenso tamanho e o abandonam diante de um impasse político. O clássico inglês serve como analogia para outra obra, “Terra do Nunca”, disco do jornalista e compositor cearense Flávio Paiva, dividido com a cantora maranhense Anna Torres e com o músico paulista Paulo Lepetit.

Completando 25 anos em 2022, “Terra do Nunca” fala também de um país que insiste em sua pequenez e inação. “Viver em um país colonizado sempre me incomodou. É como a metáfora de Gulliver, como se a sociedade tivesse diminuído”, explica Flávio Paiva, que, à época, se inspirou em outro personagem: Peter Pan, o menino que não quer crescer. “O peterpanamericanismo não nos deixa crescer. E, se você não cresce, o gato vem e come”, completa.

A história nasce quando, num festival, meados dos anos 1990, Flávio vê Anna Torres cantando no palco. “Foi uma troca de energia incrível e ele, imediatamente, me convidou para participar desse disco. Foi uma grande honra porque eu estava em começo de carreira. Não conhecia ninguém da turma, apesar de já morar em São Paulo à época. Foi um lindo intercâmbio”, lembra Anna, de Paris, onde mora há alguns anos.

O terceiro elemento a entrar foi o Paulo Lepetit. Figura central da “Vanguarda Paulistana”, na época ele estava testando seu recém-inaugurado estúdio digital. “Não lembro como ele chegou a mim, mas o Flávio é super antenado. E foi um dos primeiros que eu produzi fora da minha bolha”, comenta Lepetit.

As ideias sonoras trazidas por Lepetit para “Terra do Nunca” – que incluem loopings e samplers – casaram com o que estava fazendo a cabeça de Anna e Flávio. “Tinha elementos desse CD que eram meus na época. Assim como do Paulinho Lepetit, com a coisa urbana, que era minha também. Apesar de sermos diferentes, tínhamos algo em comum”, avalia Anna. “Quando a Anna Torres chega, aquilo não é mais a minha música. E com a sonoridade agregada pelo Paulinho o disco deixou de ser meu”, conta Flávio. Lepetit corrobora: “Esse trabalho tem uma pegada muito mais pop do que eu fazia. Era um laboratório que eu estava aprendendo a fazer”.

O disco “Terra do Nunca” rendeu uma turnê que passou por Fortaleza, Canoa Quebrada e outras praias cearenses. “Foram uns 10 shows em 15 dias. O Flávio tirou férias e levou a gente pra todo lado”, lembra o baixista que reuniu sua banda e ainda convidou o trombonista Bocato e a cantora Vange Milliet. “Eu não conhecia ainda o Ceará e foi uma grande oportunidade que eu tive. Foi uma troca de energia inesquecível”, acrescenta Anna.

Falando de expectativas, miscigenação, medos e apreensões ante o novo milênio, “Terra do Nunca” foi dedicado ao indígena Galdino Jesus dos Santos, que morreu com o corpo incendiado enquanto dormia. Os assassinos eram filhos da elite brasiliense e alegaram que era “só uma brincadeira”. O que me chama a atenção é a atualidade temática. O Galdino foi queimado e, até hoje, matamos os índios, critica Flávio Paiva. “Nós não conseguimos estruturar uma elite que pensa ‘como a gente pode se colocar no diálogo global’, como é possível viver em um país com qualidade de vida. Na verdade, é: ‘Qual é o movimento da vez para que eu possa me dar bem’”.

Anna reflete: “A gente estava muito perto da virada do milênio, essa coisa apocalíptica. O Flávio estava muito com isso. A gente acabou absorvendo a música dele, transpirou e fez com que saísse algo nosso. Uma coisa mesmo de antropofagia. É arte, mais do que produto. É o resultado de três histórias, de três maneiras de fazer arte”. Lepetit segue na mesma linha, embora mais sucinto: “Só para encerrar, quero dizer que o Flávio é foda”.

QUEM É QUEM
Personagens

FLÁVIO PAIVA
Jornalista, escritor, cronista do Vida&Arte, nasceu em Independência (CE). Estreou em disco em 1994, com “Rolimã” e tem músicas gravadas por nomes como Zeca Baleiro, Chico César e Aparecida Silvino.

PAULO LEPETIT
Baixista, compositor e produtor nascido em Rio Claro (SP). Estreou ao lado de Itamar Assumpção na banda Isca de Polícia. Em 2015, dividiu com Zeca Baleiro e Naná Vasconcelos o disco “Café no Bule”.

ANNA TORRES
Natural de Lago da Pedra, na área amazônica do Maranhão. Cantora e compositora, ela reside em Paris onde desenvolve trabalhos com música. Seu mais recente projeto é o livro/CD “A cigarra autista”, já lançado em quatro idiomas.

OUTROS VIAJANTES
“Terra do Nunca” contou com outras presenças importantes, como o guitarrista Lanny Gordin, o baterista Gigante Brazil e o trombonista Bocato. Entre os parceiros de Flávio no repertório, tem Mona Gadêlha, Papete, Kátia Freitas e Cristiano Pinho.


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