DIÁRIO DO NORDESTE. Sexta-feira, 19 de outubro de 2001
Henrique Nunes
Da Editoria do Caderno 3
Finalmente! Depois de tanto nhenhenhen, de tanta menininha tentando imitar o estilo da Marisa Monte e de tanto blablablá em torno das “revoluções e sacações” da “nova música cearense”, finalmente a gente pode se deleitar com o CD de uma nova intérprete que mantém a sua jovialidade e a sua cearensidade, em um trabalho limpo, consistente, com um repertório inédito e sofisticado, revelando uma surpreendente ligação com o que há de mais atual em um estilo discreto e bem fundamentado, característico da nova safra de intérpretes da MPB.
Estou falando de gente como Carol Saboya, Dora Vergueiro, Mônica Salmaso, Giselle Martin, Belô Veloso, Simone Guimarães e algumas outras integrantes deste seleto time de novas representantes de um jeito menos formal de cantar e renovar essa tal senhora musical “popular” brasileira.
E, surpreendentemente, essa nova intérprete cearense não vem de Fortaleza, mas do interior. De Crato, do berço culturalmente esplêndido do Cariri. Estou falando de uma das filhas do instrumentista e arranjador Lifanco, a jovem cantora Lívia França, que se apresenta hoje à noite no Anfiteatro do Centro Dragão do Mar.
As referências servem só pra contextualizar o momento em que essa cantora genuinamente cearense surge no cenário musical brasileiro. Na verdade, do alto de seus 18 anos, Lívia já tem muito estilo. Aparentemente frágil, um tanto parecido com uma enxurrada de menininhas que costumam infernizar os cantores da noite, prontas para sacar o mais óbvio do repertório de marisamonteano, naquelas canjas sem um tiquinho de sal.
Que nada. Lívia tem um estilo claro, sofisticado musicalmente. Pelo menos, é o que ela demonstra no repertório de “Dançando nas Nuvens”, álbum lançado no ano passado, mas que só agora desembarca pra valer na cidade. Com a segurança de uma veterana, ela envereda por letras fortes, traduzidas em arranjos que passeiam tranqüilo por vários ritmos.
No show de hoje, ela estará acompanhada do paizão, o violonista, guitarrista e backing vocal Lifanco, também responsável pelos sofisticadíssimos arranjos do álbum. Lívia também sobe ao palco na companhia dos músicos Di Freitas (violoncelo e flauta), Cícero (percussionista), Hibertson Nobre (samplers e teclado) e João Neto (baixo).
Um time que terá a responsa de preservar toda a gama de elementos que tornam “Dançando nas Nuvens” um álbum desde já obrigatório, que faz a música cearense respirar um ar que há muito tempo não sentia, ao menos em gravações.
“Mas vamos tornar os arranjos mais pops, dando uma pegada mais forte, definindo melhor algumas harmonias que não puderam ser trabalhadas do jeito que queríamos porque foi um disco independente… Então, no show, os arranjos vão ser mais pra cima”, aposta Lifanco, cheio de modéstia.
Afinal, outro trunfo de “Dançando nas Nuvens” são os arranjos de Lifanco, conhecido instrumentista com participação em mais de 30 álbuns. Do bacaninha reggae aflautado “Seu Olhar no Meu”, de Abdoral Jamacaru, às suas parcerias com Mairo Sousa, José Milton Figueiredo e Patrícia Lilian.
A única regravação é “Cor de Sonho”, de Mona Gadêlha, que ganhou uma pegada forte e ao mesmo tempo mais lírica que a versão original, em forma de um blues aviolado. As poesias se sobressaem nos agudos bem colocados pela cearensidade de Lívia. Inclusive em batidas mais pops como a faixa-título “Dançando nas Nuvens” (Flávio Paiva/Verônica Nunes), que ganhou um arranjo mais dance, próximo da música de Flávio Paiva.Canções com letras que têm o que dizer, até mesmo porque poucas coisas podem ser mais complexas do que o amar. “Visões” (José Milton Figueiredo/Francisco Sávio Pinheiro Couto), “Roendo Unhas” (José Milton Figueiredo/Lifanco), “Talvez” (Lifanco/Mairo Sousa) e “Jeito de Amar” (Lifanco) expõem bem esse universo por vezes complicado, de onde se extrai esse sentimento, seja em baladas mais líricas ou não.
“Embora o repertório seja talvez muito maduro para a minha idade, a gente acaba se resolvendo. Sempre ouvi boas músicas, sem me prender a estilos. Se tiver boas harmonias e passar boas mensagens estou dentro. Meu pai me ajudou muito porque ele escuta muita coisa boa e me incentiva muito”, revelou a cantora, que, apesar de não negar a influência de divas de sua geração, como Marisa Monte e Adriana Calcanhotto, não deixa de criar algo bem seu, nessa estréia que tem tudo para ser incentivada pela comunidade caririense e pelos apreciadores da boa música.