Revista Poder Local, Ano I – nº 2, março/2004, p. 50
Revista de Políticas e Gestão Pública
FAC-SÍMILE
Tem sido cada vez mais crescente o número de empresas que apelam para as ditas vantagens filantrópicas, na tentativa de serem percebidas como organizações com responsabilidade social. Destituídas, muitas vezes, de um maior aprofundamento da onda em que estão metidas muitas dessas organizações acabam confundindo situações emergenciais com regularidade desejada, contribuindo para que a exceção vire regra. O uso derrisório das ferramentas de marketing, com o intuito de beneficiar imagens corporativas e de conquistar a simpatia da população com base no infortúnio da grande massa de excluídos, é uma prática temerária e condenável.
Sem dúvida que muitas das campanhas ditas de “solidariedade” agregam sedativos evanescentes em focos sociais marginalizados, embora a prova dos nove do imediatismo resulte na sofisticação da dependência. Traídas pela carência, as pessoas acabam esquecendo que solidariedade pressupõe uma ligação recíproca com autonomia das partes. Em períodos de necessidade extrema, fica difícil pensar se o “bom samaritano” não é, na verdade, um cleptomaníaco lavando dinheiro em ação de graças. Marketing quer dizer troca, portanto, ao ser utilizado com vista a retorno, mesmo institucional, em cima da pobreza, é uma farsa técnica e ética que rompe com as regras mais elementares da polidez humana e empurra mais e mais os excluídos à condição de pedintes, aviltando reservas sociais de indignação.
A caridade sempre foi praticada por razões compensatórias de remorsos dolosos e culposos, embora sirva de meio salutar aos que intuitivamente elevam o espírito fazendo pequenas diferenças. Ela está na gênese do assistencialismo. Sobre a sua evocação, pouca chance há para a construção da cidadania. Ajudar é o verbo mágico da submissão atávica. Não existe nada de novo na prática da benesse filantrópica e assistencialista. Que o digam os clubes de serviços, a maçonaria e as primeiras-damas. A mobilização da sociedade para a superação das condições emergenciais presas ao plano escorregadio do subdesenvolvimento crônico precisa ser estimulada fora do âmbito da esmola. Ao invés de ficarem com pirotecnias evasivas, para causar boa impressão com a miséria dos outros, os promotores dessas empreitadas poderiam ganhar bem mais, no plano do equilíbrio coletivo, pagando impostos, cumprindo com as suas obrigações de respeitar a qualidade de vida, dando impulso a empregabilidade e melhorando as condições de renda da população.
A Constituição Federal de 1988 tenta romper com a acepção de necessitado, contida no conceito de assistência social, alterando-a para seguridade. Foi uma vitória política, sinalizadora da universalização dos direitos sociais, porém, com tantas boas idéias, não consegue nem ser absorvida nem encontrar repercussão transformadora. O acesso à educação, saúde, terra, moradia, transporte, alimentação, lazer, entretenimento, bens culturais e informação de qualidade ainda é visto como um perigo bem maior do que o estopim que se mantém aceso para a crescente marginalidade explosiva.
É preciso, contudo, reconhecer muitos avanços importantes ocorridos no Mercado, notadamente no que diz respeito à conquista dos direitos de consumidores, mas é preciso também estar desperto para distinguir as empresas limitadas a fazer cortesia com o chapéu dos benefícios tributários e do excedente da sonegação para aparecerem como amigas e cidadãs. Nesses casos, o discurso da inclusão não passa da necessidade de referência ao outro como uma forma torpe de se isolar. Esse negócio de, por um lado oculto, ser responsável pela fomentação da miséria e, por outro, aparecer com riso de manequim em coloridas, dispendiosas e fastidiosas peças de publicidade e propaganda é pura necrofagia social.