Itaú Voluntário, Clipping 2006, 28/09/2006
Fonte: O Povo
O que acontece com a literatura quando um autor escreve com forte influência da visão e é lido auditivamente por quem tem deficiência visual? O Vida & Arte convidou a cantora e educadora Ângela Linhares
Ângela Linhares (*)
Especial para O POVO
Talvez que o sentimento fosse a cor do mundo. Essa cor do mundo, como o ninho das corujinhas da estrada, muda vez em quando. No meu coração, noite passada, um ninho novo aconteceu. Eu via um autor de histórias infantis conversar, em uma escola de crianças, com três deficientes visuais (Soares, Antônio e Valmir), sobre o modo como fora ouvido por eles – sua história tinha sido gravada em CD por Antônio Nóbrega, o texto tinha sido ilustrado com aquarelas de Estrigas. – Como criam as imagens da história, pessoas como vocês, que não enxergam com esse sentido da visão? – perguntava o autor Flávio Paiva aos deficientes visuais. E Flávio Paiva continuou contando: o Bacurau começou como acalanto – essa reza de mãe que as culturas inventaram. Essa canção de fazer dormir que minha mãe debulhava nos longes sertões da infância era mais ou menos assim: ‘Benedito Bacurau / Tá no oco do pau’.
Lembrando dessa mãe que assoma à porta do tempo e invade as manhãs, ainda hoje, Flávio Paiva escreveu uma longa história sobre essa corujinha, o Bacurau. O interessante é que essa corujinha, o Benedito Bacurau, fazia seu ninho por todo canto do mundo e o detalhe era que só dava para ver o bichinho – nas locas, no tronco das árvores mais estranhas, no chão dos quintais da criançada -, quando se começava a sonhar. É esse sonho comprido, cheio de brincadeiras sem pé nem cabeça, que se enrosca nas ruas da meninada, nos escaravelhos, nos segredos das casas gigantes, cheias de mestiços, negros, charangas e arco-íris, que o coração menino do autor Flávio Paiva vai contar no seu livro ‘Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo’.
– O Bacurau, interrompeu Antônio, é uma história para a criança que temos em nós, uma criança sem tempo. Poderia existir um Benedito Bacurau dentro de cada um de nós. Para mim, a gente carrega sempre um bichinho desses dentro da gente – essa coisa que acorda no nosso sonho, em aventuras radicais, acho que é o Bacurau. O que eu achei engraçado, continuou Antônio, era que a criança não tinha certeza nunca de como era o Bacurau. O Bacurau ficava imaginando o mundo dele e a gente imaginando o Bacurau.
– Nessa história, outros tempos passam por nós – disse Valmir. Cada vez que o pássaro Bacurau ia fazer ninho na Coluna da Hora, na praça do Ferreira, outro lugar e outro tempo chegava, como se tivesse dobrado na página do hoje.
Imaginei-me em outras existências, entre lareiras e histórias frias. Depois, na escravidão brasileira, cantando em senzalas a alma nativa. Nesta encarnação, a infância ante o mar. Quanto mar, de águas tão diversas tisnavam o insólito diálogo entre nós; quantas chuvas molhavam palavras que não se ouviam mais!
– Quando eu ouvia a história, eu sentia esses lugares e tempos que chegavam… – disse Antônio. A casa grande do Bacurau é a casa interior da gente e é também o país que a gente imagina. Acho que a gente quer cuidar dessa casa que é o nosso país – é esse sentimento que eu sinto e que as palavras trazem.
O autor Flávio Paiva esgueirou-se para outro tom de conversa, como quem sai catando poesia no chão da noite. Soares escutava tudo, absorto. E Antônio continuou:
– Quando o Bacurau falava em ‘brincar de brincadeira’… aquilo me tocou. Eu achei que era uma coisa inocente como os animais brincando. Acho mesmo que em cada pessoa tem um Bacurau, um lado de brincar assim sem maldade.
– Eu quis saber como vocês combinam os sentidos… Como vocês liam auditivamente o que escrevo… E quando cheguei, vi que vocês constroem sentimentos – completou Flávio o que vinha costurando com o olhar.
As asas brincalhonas do Bacurau que Flávio Paiva trouxera farfalhavam: para entender as coisas é preciso brincar de imaginar. A poesia dos contadores de história que Flávio trouxera, levava para o exercício de autoria de quem o lia. Como uma água boa de pote, que pede mais, novas histórias foram entrando no tempo da conversa e foi então que Antônio, como bom aprendiz de imaginador, começou a contar-se: tinha uma história de dois cegos que se encontram no centro da cidade; um percebera o outro levando uma topada; o outro, um esbarrão. – E sabe o que eles dizem, os cegos, quando se topam e esbarram? ‘Seu cego, não olha por onde anda, não?’ – disse Antônio, rindo a valer. E continuou: ‘mas um dia, um leva o outro pra mostrar o que se pode aprender assim, a partir de esbarrões e topadas.’
Andréa, a jornalista e o amor de Flávio, arrematou: – Às vezes, a gente nem imagina como algumas histórias conseguem aquecer nosso sentimento do mundo. Estava tarde; as mãos de Soares, Antônio e Valmir tatearam
caminhos entre outras mãos; a poesia agora era uma estranha música de se tocar leve. Começamos a pensar que claves Flávio Paiva trazia a essa luz que, de repente, esvoeja. E, como a corujinha dos sertões, o Bacurau, se esconde para que o desejo da gente possa viver fazendo do sonho carne dos dias.
*ÂNGELA BESSA LINHARES é dramaturga, cantora e educadora