Revista Fale! – Cultura/Livros – Fev/Mar 2002

Livro recupera a tradição das velhas cantigas de roda para serem trabalhadas de maneira educativa

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FAC-SÍMILE

Eu ia passando, Flor de Maravilha/ Meu amor chamou, Flor de Maravilha/ Meu chapéu caiu, Flor de Maravilha. Para as crianças e os jovens adultos de hoje, talvez esses versos não façam o menor sentido. Mas, para o jornalista, escritor e compositor Flávio Paiva, essa foi uma das antigas cantigas de roda que marcaram sua infância na cidade de Independência, no sertão do Ceará. Tanto que ele resolveu batizar seu mais novo trabalho editorial com esse nome. Flor de Maravilha(Plural de Cultura, 108 págs.) é um apoio didático aos dois CDs (inclusos no livro) de músicas infantis lançados por Paiva – Samba-le-lê e Bamba-la-lão – por ocasião do nascimento de seus filhos. “Esses termos são arquétipos do universo musical infantil que eu tomei como um guarda-chuva para as outras composições”, explica. 

O livro, patrocinado pela Companhia Energética do Ceará (Coelce), pode ser adquirido gratuitamente com o autor (flaviopaiva@fortalnet.com.br). Embora todo desenhado como uma autêntica obra para o público infantil, destina-se aos pais das crianças, e traz as letras e as cifras das músicas dos CDs acompanhadas de uma brincadeira ou atividade pedagógica criadas ou adaptadas pelo próprio Paiva para serem executadas junto com a canção. A idéia de transpor para o papel as composições veio a reboque do sucesso dos CDs. Uma sugestão da secretária de educação do Rio Grande do Sul, Lúcia Camine, chamou a atenção para a necessidade de se contextualizar músicas como Festa em Independência, que faz referência à alegria que toma conta da cidade nos dias chuvosos. “No Sul, os dias de chuva são tidos como dias monótonos, sem graça. Ela disse que seria muito legal se junto dos discos viesse a explicação dos versos”.

A sugestão foi atendida, e Paiva associou a cada canção alguns motivos que o levaram a compor a música, além das atividades lúdicas. O trabalho não teve a colaboração de nenhum pedagogo. Com exceção para a conhecidíssima brincadeira da amarelinha, tudo saiu da cabeça do jornalista. “Até cogitei a possibilidade de contratar um profissional, mas depois pensei que fui criança também e que esse seria um trabalho intuitivo, não encomendado”, diz. “Fiz uso do que eu chamo de ‘paternidade criadora’, da vontade de transmitir para os filhos essa vivência. Essa forma instintiva gerou o material”. Assim, ele descreve suas experiências infantis e incentiva a repeti-las sob forma de exercício. As brincadeiras acompanham os ritmos das composições, que variam desde o xote até algo meio estranho para uma cantiga de roda como um rap funkeado. A variedade dos ritmos foi mais uma adequação à pluralidade da música brasileira do que uma tentativa de didatismo musical. “Se temos a vantagem de possuir tantos ritmos, temos que aproveitar isso. O funk é a expressão de uma dor, e a questão da exclusão deve ser tratada desde a infância. Só assim teremos essa percepção”.

Depoimento: A infância vale a pena
flordemaravilha_capamA principal marca deste trabalho é a honestidade dos sentimentos interligados pela dinâmica das letras, músicas, jogos e brincadeiras espalhadas em suas páginas e discos. São emoções que encantam os olhos pelas imagens apaixonadas que revelam em múltiplas combinações de significados; que dão água na boca, pelo sabor de infância das suas expressões largadas; que recorrem à habilidade inventiva, pelo calor que só as mãos conseguem captar nas cotidianas de quem quer crescer; que revolvem paisagens, pelo cheiro fascinante guardado na memória renovadora do nariz, exalando impressões de eterna esperança; que concebe metáforas, pelos sons que tocam cada ouvido, reverberando sonoridades de um mundo desenhado pelos traços livres do imaginário. Tudo isso, com a colaboração imprescindível dos sentimentos adicionais que a intuição arranca do fundo do coração de quem ama. É uma obra de realidades manifestadas e colhidas na vida infantil, com o propósito de se colocar em função das crianças, dos pais, amigos, tios avós, educadores, babás, enfim, de todas as pessoas que acreditam que a infância vale a pena. (Flávio Paiva) 

Flor de Maravilha é o primeiro trabalho editorial dedicado ao público infantil de Flávio Paiva, um jornalista que cedo se dedicou a trabalhos com ONGs, e produções independentes relacionadas com o jornalismo e as artes. Embora o primeiro CD para crianças tenha saído só em 1999, ele diz que sempre se interessou pelu universo infantil. “Não tinha feito nada antes porque uma coisa é você se interessar pelo assunto como uma coisa racional, outra coisa é você trabalhar de uma forma mais estética”. O trabalho estético só foi possível após o nascimento do primeiro filho, Lucas, naquele ano. Já no segundo, em 2001, ele pôde sentir os efeitos da sensação de ser pai. “As letras são diferentes, contêm minha relação com o Lucas. Jamais poderia fazer isso sem um filho”. Apesar do caráter recente da obra, Paiva já larga com alguns méritos. O primeiro é dar um alento à produção independente das composições infantis, ofuscada pelo marketing milionário de Xuxas e Elianas. O segundo é fugir do lugar-comum desse tipo de produção, que freqüentemente apela para adaptações de fábulas e contos já demasiadamente explorados.

Por último, tenta desviar as atenções do vídeogame e jogos de computador para as velhas cantigas de roda, que dão ensinamentos de convivência e não esbarram no erotismo precoce. Para Paiva, atividades tradicionais ainda encontram espaço mesmo com a força cada vez maior da indústria de brinquedos eletrônicos. “Não sou contra duas horas de vídeogame, mas essas brincadeiras de grupo são instrumentos milenares de educação. Nelas, as crianças aprendem a respeitar a vez do outro, enquanto a geração eletrônica perdeu esse sentimento. São crianças agressivas porque não tiveram a oportunidade de respeitar os outros”. Pelo menos entre os pais, o livro com as cantigas está tendo boa recepção. Paiva tem recebido correspondências e e-mails de pessoas e educadores que já usam o livro em suas atividades e inclusive propõem alguns acréscimos às futuras edições. Mas a maoir recompensa vem mesmo das crianças, quando os pais o apontam como autor das músicas ou quando elas ligam para ele falando e perguntando sobre o livro. O jornalista sentiu a emoção à flor da pele quando flagrou o coral de dois colégios de Fortaleza interpretando suas músicas. Parece que os vídeogames não estão mais tão atraentes assim.