O compromisso do meu pai com a vida envolveu a boa morte. Anos antes de falecer, ele me chamou para dizer que o seu tempo estava ficando curto e que gostaria de encaminhar a sequência do que diz respeito aos bens que iria deixar e ao espírito do lugar onde morava. Teve a sabedoria de viver com o necessário. Para ele, o conforto estava no movimento dentro da paisagem. Foi assim que um dia desligou naturalmente, enquanto se balançava em uma rede na sala de casa.
Sentados à mesa do alpendre da pequena, mas linda, fazenda Manchete, ele e a minha mãe falaram de duas preocupações essenciais para quando ele partisse: a primeira, a de não deixar pendência de inventários, e, a segunda, a de expressar objetivamente a gratidão que tinha pelo dois trabalhadores que o acompanharam com respeito, atenção e paciência nos seus últimos anos de labuta.
Transferidas as propriedades para os três filhos, ficando a minha mãe com o direito de usufruto vitalício, ele reforçou que gostaria que o Manezinho e o Lisboa também herdassem parte da terra, da qual pudessem tirar o sustento de suas famílias. Foi fácil, pois sempre tivemos os dois como nossos irmãos. Independentemente de serem pagos como trabalhadores, eles integravam a dinâmica daquele lugar que o meu pai chamava de “Sistema”, por tê-lo feito ser autossustentável.
Naquele momento, senti que ele queria concluir o que teria vindo fazer na Terra sem deixar pendências. Meu pai sempre viu a existência pelo que ela pode trazer de sentido. Costumava dizer que tudo tem um por quê. E a razão do agradecimento ao Manezinho e ao Lisboa devia-se a paciência deles diante da variação de ordem e intensidade que o passar dos anos impôs ao seu viver. Além de eles conhecerem bem a labuta, de saberem conversar com os animais e de gostarem da natureza.
Meu pai quis ser útil até o dia da morte. O Manezinho e o Lisboa conviveram com esse esforço dele, enquanto seus sentidos iam sendo desativados pela idade. Mesmo quando se desentendiam, a franqueza do desentendimento produzia bem estar emocional. Presenciei muitas histórias dessa inusitada tolerância que eles praticavam.
Um dia, meu pai queria cortar um pé de bougainville lindamente florido que, segundo ele, estava atrapalhando a passagem dos carros. O Lisboa não concordava muito, mas ia podando um galho aqui, outro acolá. E o meu pai insistindo para ele cortar mais. Em um determinado momento, o Lisboa meteu o facão e cortou mais do que devia. Enquanto meu pai reclamou que tinha sido muito, o Lisboa retrucou: “Tem gente que acha bonito coisa feia, então taí”.
Um dos segredos de vitalidade do meu pai era uma rede de tucum armada permanentemente em um galpão da garagem. Mais do que um apoio para descanso, era no balançar dessa rede que ele aliviava o discurso interno quando estava com raiva de alguma coisa. O Manezinho e o Lisboa sabiam disso e não mexiam com ele nesses instantes de distanciamento e de busca da paz absoluta.
No sábado passado, 25, entregamos as escrituras de propriedade do Manezinho e do Lisboa. Cada um ficou de um lado da área que reservamos para ser a morada da lembrança daquele lugar onde a presença do meu pai segue no movimento dos bichos, no farfalhar das folhas, no canto dos pássaros, na plasticidade da copa das árvores ao vento, no céu azul e nas noites estreladas do sertão.